junho 2018

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    Alberto Moravia | Entrevista com Madeleine Chapsal

    Entrevista conduzida por Madeleine Chapsal, publicada no seu livro Os escritores e a literatura Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1967.

    As entrevistas embora tenham muito de preparado num jeito de antecipação calculada trazem sempre consigo aspectos inesperados, genuínos, que reflectem pelo menos, num dado momento, as preocupações e a alma do escritor, daí serem tão importantes.


    - Há muito tempo que não vinha a Paris?

    Desde 1951. Nessa época tinha acabado o argumento para um filme mal encaminhado. Foi um período triste... Desta vez, porém, estou completamente livre.

    - Para um escritor, que diferença existe entre a vida em Paris e a vida em Roma?

    Em Paris pode dizer-se que os escritores mais integrados na sua personalidade de escritores, são personagens sociais. Em Roma, os escritores deixam-se estar tranquilos. E Roma não passa, claro, de uma cidade da Itália, enquanto em Paris se concentra noventa por cento da vida intelectual.

    - Escreve algum romance neste momento?

    Sim, como sempre.

    - Interrompeu-o para vir a Paris?

    Não, escrevo de manhã no hotel. Esta manhã já escrevi. Trago sempre o meu manuscrito. Encontro-me muito bem aqui, porque posso escrever. E isso depende muito do quarto, da disposição da mesa...

    - Qual é o tema do seu romance?

    O herói é um pintor que não pinta ou não pintará mais.

    - Um impotente?

    Do ponto de vista da criação artística, sim. Um problema interessante a descrever será o que se refere ao fim da arte, que, aliás, tem sido previsto por diversos filósofos. O mundo moderno já não tem necessidade das artes e substitui-as por alguns ersatzs (sucedâneo) artísticos. 

    Por exemplo, no domínio da literatura, cria-se a máquina para ler. Diversas revistas americanas, como a Time, são já máquinas de leitura, como as casas de Le Corbusier são máquinas de habitar - a Time é composta de frases ajustadas umas às outras, de uma maneira completamente mecânica. É isso a industrialização da cultura.

    - Parece, pois, que nunca se escreveu tanto.

    Sim, mas a maior parte das coisas que se redigem não são escritas. Os jornais, por exemplo, são mais impressos do que escritos.

    - Será uma questão de inspiração?

    É um problema de civilização. As artes poderão morrer por uma razão simples: a arte não é mais do que uma alta, muito alta, forma de artesanato. No mundo inteiro, assistimos ao fim do artesanato. 

    Ora, o homem reflete-se naquilo que produz: pois que, se se fabrica para tudo objetos em série, não se poderá também impedir de criar homens em série - e o homem em série é o contrário do artista.

    - Haverá sempre homens que resistirão à sociedade?

    Um artista é um belo ser independente, mas quando se trata de assuntos para uma sociedade restrita como a de Luís XIV, ou vasta como a atual sociedade francesa, põem-se problemas diferentes. Há sempre uma pressão.

    - Que representa para si o público?

    Isso pergunto a mim mesmo! Não existe público italiano. A nossa crítica, por vezes excelente, funciona em ciclo fechado: são algumas conversas privadas que vão para a tipografia. Como saber o que isso representa? 

    Devo parecer, pois, como um senhor que fabrica regularmente alguns objetos de qualidade satisfatória, numa fábrica em que a produção é conhecida por ser honesta... Então, se ele inspira confiança, muita confiança, não deverá ir mais longe...

    - Quando começou a escrever?

    Aos nove anos! De fato, aos dezasseis anos já escrevia muito seriamente. Não poderá imaginar o que foi o sucesso do meu primeiro livro! Gli indifferenti, publicado em 1929. 

    Tinha pouco mais de vinte anos. Apesar, claro, de a tiragem ser de início muito frouxa: 6000 exemplares. Depois sobreveio o fascismo, que não permitiu a reimpressão. Agora, é necessário multiplicar por dez essa primeira cifra.

    - Como explica esse sucesso?

    Não existia, então, nem romances nem romancistas na Itália, exceto Italo Svevo. 

    Com exceção dele, era necessário recuar até 1910 - quase vinte anos antes - para encontrar D'Annunzio, que apresentava os burgueses transfigurados em heróis. Sim, na obra de D'Annunzio, todos os burgueses eram heróis! E foi isso que fez o sucesso de Gli Indifferenti: eu tinha mostrado a burguesia tal como ela era, muito pouco heróica.

    - Não tem ultimamente procurado atingir um público mais vasto? La Provinziale, A Ciociara, não parecem ter um estilo mais popular, quase «folhetinesco»?

    Não me interessa nada o público. Hoje, lança-se um livro como uma lata de sardinhas ou um maço de cigarros...

    - Mas, apesar disso, não há atualmente uma nova fase na sua obra?

    Absolutamente! Com efeito, eis o que se passa: após uma evolução formal muito complicada, tentei duas experiências paralelas: de uma vez escrevi um romance sobre as «massas», de outra vez sobre os intelectuais. 

    Costumo alternar. Escrevi A Romana e, em seguida, A Desobediência. Depois escrevi L'amore conjugale, seguindo-se Il conformista. Ultimamente escrevi A Ciociara, a história de uma prostituta, e agora estou a escrever um romance em que o herói é um pintor.

    - E não sofre quaisquer dificuldades ao passar de um tom para outro?

    Nada. E digo-lhe porquê: nasci de uma família bastante burguesa, em 1907. Gli indifferenti, o meu primeiro romance, é a descrição crítica desse ambiente social. Logo após ter escrito esse romance senti que me desligava da burguesia e me aproximava com mais simpatia e atração das classes populares. 

    De qualquer modo, quando realizo um romance sobre a burguesia não é esta que mais me interessa enquanto classe do dinheiro. A meu ver, o verdadeiro drama da burguesia é o drama dos intelectuais. 

    Apenas eles têm consciência desta situação de nivelamento como burgueses em face das classes populares, de que tentam, aliás, separar-se. O único herói burguês possível é o intelectual.

    - Em que medida Michel, o jovem herói burguês de Gli indifferenti, é o que se chama um intelectual?

    Michel encontra-se perante um problema moral, atormenta-se, pensa, e isso faz dele uma espécie de intelectual. Mas também Il confomista. Interessam-me as classes populares, porque somente nelas se pode encontrar ainda o sentido do carácter e da moral que não existe nos burgueses. 

    Nestes, claro,o carácter é destruído e corrompido. Encontra-se em decadência como a própria burguesia, Na minha opinião, não existem hoje mais do que duas formas de romances possíveis: o romance de ideias e o romance popular.

    - E porque entende praticar estas duas formas?

    Julgo mostrar duas espécies de herói: de um lado, o intelectual, o herói da dúvida, atormentado pela sua consciência e a sua lucidez - note que não digo que o inventei -, e, do outro lado, algumas personagens picaras como aquelas que mostrei nos meus contos romanos. 

    A personagem pícara tem apenas necessidades económicas. A sua única preocupação é o estômago. 

    De fato, não há nela qualquer outra aspiração, mesmo o amor a deixa indiferente. Necessita de comer para não morrer, e daí o seu comportamento tantas vezes grosseiro, cúpido e até manhoso.

    - Tem-se reprovado os seus livros por tratar neles muitas vezes problemas do sexo. Que pensa disso?

    Antes de mais, há um problema de designação: o que antes se afirmava por “amor” é agora designado por “sexo”. Mas não é essa a única razão: a verdadeira é que no mundo moderno não existem muitos valores seguros e sólidos, sendo o sexo um desses valores. 

    Ora, o escritor tem necessidade de se basear naquilo que, a seus olhos, represente uma certa realidade. Outros escritores apoiam-se sobre o dinheiro; em Stendhal, por exemplo, existe a missão social. Para mim, talvez seja o sexo.

    - Porque continua a escrever romances? Não se tem dito muitas vezes que o romance clássico é hoje um género literário ultrapassado, fora de moda?

    Ah!, pretende falar-me de Robbe-Grillet? Objetivo, desumanizado, apoiando-se principalmente no olhar. Mas a própria escolha pelo olhar julga e decide logo que isto ou aquilo lhe interessa. Se quisesse descrever exaustivamente sei lá o quê... uma mosca, por exemplo, seriam necessárias dez mil páginas...

    - Mas não se tem aplicado muito para ser uma espécie de romancista integral do mundo?

    Talvez, mas em mim não acontece por tema. Isso deriva do fato de acreditar sempre que as coisas me escapam.

    - Sofreu algumas influências?

    Sim, quando era jovem. Mais tarde, não sofri já qualquer influência. Ou, então, não se é de fato um bom escritor. Aos dezassete ou dezoito anos, li muito Joyce e Dostoievski. Depois, gostei bastante de Stendhal.

    - E Maupassant?

    Não, e não é por causa de Maupassant que eu escrevo contos, mas devido a um grande poeta italiano do século XVIII, Giuseppe Gioacchino Belli, que escreveu três mil sonetos sobre a vida do seu tempo. Foi isso que me inspirou na realização de algumas novelas sobre Roma: já escrevi cento e trinta, que, muito brevemente, aparecerão em volume.

    - Por que sobre Roma?

    Porque é a minha cidade. Sou romano e passei em Roma alguns anos, por vezes mesmo longos períodos. Tenho, pois, uma grande experiência de Roma... Os meus contos apareceram antes no Corriere della Sera. É muito interessante escrever tendo em conta um espaço previamente limitado - duas colunas do jornal -, o que nos obriga a restringir e a encurtar.

    - Como é que escreve?

    Trabalho de manhã, todos os dias, das nove horas à uma, e depois ao fim do dia. Faço sempre isto, mesmo ao domingo, desde os meus dezasseis anos. E escrevo diversas vezes cada romance. Como os pintores da Idade Média, passo algumas demãos de tinta. Escrevi duas vezes A romana e três vezes Il conformista. Mas também acabei o Agostinho num mês.

    - Sente-se mal com esse ritmo de trabalho?

    Não. Levanto-me e coloco-me à mesa para trabalhar. Escrevo diretamente à maquina. É o gesto e o movimento que conta. No início da minha carreira, escrevia três ou quatro linhas por dia e sentia-me esgotado. Agora, tudo isso se tornou mecânico: logo de manhã sinto que devo sentar-me à minha mesa de trabalho. É assim a minha maneira de ser.

    - E nunca trabalha além das quatro horas?

    Sei que certos escritores franceses trabalham durante todo o dia. Isso parece-me prejudicial. Deve esquecer-se durante uma boa parte do dia de que se é escritor. Em arte, o tempo é, de resto, uma medida convencional: pode-se em dez minutos recuperar alguns anos de preguiça ou de obscuridade, 

    A inspiração não se importa com o tempo. Verifica-se isso, verdadeira e fisicamente, nos momentos de inspiração: a inteligência executa, então, operações com uma rapidez extraordinária. Não é de espantar que Stendhal tenha escrito A Cartuxa de Parma em quarenta dias.

    - O que é para si a função de escrever?

    Obedecer a uma certa música. Sentir uma simpatia e caminhar para ela. Trabalha-se pelo ouvido.

    - Que encontra de mais difícil no ato de escrever?

    A incompreensão do escritor em frente do seu tema. É preciso muito tempo para compreender bem o que queremos. Descobrir os temas... Deve-se escrever um romance durante alguns anos.

    - O que pretendeu mostrar em Il conformista?

    Aquilo que me parece um ato humano típico: como um indivíduo pode transformar uma situação negativa do ponto de vista sexual numa situação positiva do ponto de vista social. 

    Il conformista é um rapaz que, sendo pederasta, procura salvar-se e escapar ao seu sentimento de culpabilidade, entrando para a policia. Você pensa certamente que ele não deixa de permanecer numa situação negativa. É isso o fascismo.

    - E como explica O desprezo?

    Em O desprezo procurei mostrar como o dinheiro, num mundo capitalista, determina não apenas as relações de negócios, mas também as relações afetivas. Está igualmente fixado sobre a dúvida: a mulher começa a desprezar o seu marido porque desconfia que ele a quer pôr nos braços, do realizador, do qual depende o seu futuro como cenógrafo. O livro decorre em Roma e em Capri, no mundo do cinema. onde o dinheiro tudo corrompe.

    - Os seus romances apresentam uma imagem muito cruel e amarga do mundo.

    Eu diria violenta, mas não amarga.

    - Mas os seus heróis não parecem ter qualquer momento de bom humor.

    Não procuro mostrar o bom humor. Os heróis de romance não têm de ser felizes. Devem, pelo contrário, ser durante todo o tempo aquilo que as pessoas são num instante no auge dos seus conflitos. Enquanto na vida se esquecem à vontade os seus problemas, as pessoas são desse modo mais felizes.

    - A sua atividade de romancista ocupa-o inteiramente?

    Num mês há trinta dias. Quatro dias por mês são consagrados à critica de cinema, que, durante dez anos, todas as semanas, faço no Espresso... 

    Escrevo as minhas novelas numa média de duas por mês e preciso sempre de quase quatro dias para cada uma... Depois, claro, é preciso contar com as doenças... e as viagens... De uma maneira geral, restam-me quinze dias por mês para trabalhar no romance. O que, aliás, não é muito.

    - Interessa-se muito de perto pelo cinema?

    É a forma de espectáculo que, na Itália, tem hoje mais vitalidade. Nela se encontra tudo: o dinheiro, o talento, a cultura. É, de resto, uma arte perigosa para o escritor: arrisca-se a esta contínua procura de processos. E, depois, a máquina necessita permanentemente de material novo. O cinema e a televisão são monstros que devoram todo o material.

    Encontramo-nos numa época de indústria cultural. Onde vai o tempo em que o escritor não sabia a quem confiar os seus manuscritos? Quando se pensa que a Idade Média viveu apenas do único Roman de Renart*...

    - Há quantos anos é crítico de cinema?

    Há dez anos. Falar de filmes é um pretexto que me permite falar de hábitos, de literatura, enfim, de tudo o que quero. Reconheço assim que a atividade crítica é a que mais convém a um artista. E mais: a atividade crítica é-lhe necessária. Um bom escritor é sempre um crítico.

    - A que chama você, um «bom escritor»?

    Isso não é uma questão de técnica ou de qualquer outra coisa: o bom escritor - como o bom cientista ou o bom pintor - é aquele que tem mais temperamento que os outros. 

    Veja uma página de um bom escritor: é de fato uma página bastante rica. Vê-se isso em todas as linhas, na invenção, na novidade do estilo, na originalidade da linguagem. É um tecido fechado, brilhante..

    - Não acabou de ser eleito presidente do Pen Club ?

    Sim. Não era membro, mas aceitei, porque penso na utilidade de uma associação como esta: multiplicar os encontros fora da Europa. Os congressos do Pen Clube têm lugar uma vez por ano e prolongam-se durante sete dias. Parece-me que o congresso teve mais um forte interesse que o de Frankfurt. E eu pretendo criar um prémio literário.

    - Disse-me que uma parte do seu tempo era consagrada às viagens. Aonde tem ido?

    No tempo do fascismo, a gente aborrecia-se muito e isso levava-nos a partir! Estive em Londres, na China, em Paris, no México. Depois da guerra, fui aos Estados Unidos em 1955, à Rússia em 1956, à Pérsia, ao Próximo Oriente e, ultimamente, ao Japão.

    - Como escritor, nunca encontrou quaisquer obstáculos?

    Tive dois obstáculos para superar. Primeiro, foi a minha doença - tuberculose óssea. De cinco em cinco anos ia à cama, o que me deprimiu bastante. E depois, claro, houve o fascismo. No entanto, não acredito muito nos obstáculos exteriores. O olhar do homem moderno é demasiado forte para tudo conseguir anular, mesmo a doença. Há somente para ele alguns obstáculos interiores.

    - Para toda a gente?

    O homem comum tem certamente os mesmos problemas do artista, mas este possui sobre ele uma vantagem incalculável: pode exprimir-se. O artista liberta-se criando, e isso dá-lhe um equilíbrio, nem sempre feliz, mas de qualquer modo um equilíbrio. 

    Para o homem vulgar, que não tem outro meio de defesa, só lhe resta sofrer ou, então, torna-se doido, ladrão, mata a mulher, etc.

    - Inclui nos seus livros muitos aspectos da sua personalidade?

    Os meus livros não são absolutamente autobiográficos. Tendo a repetir-me. Ou melhor, mete-se sempre muito do que é nosso naquilo que se escreve. Ora, eu sou um homem como os outros. Não quero ser diferente, mas por outro lado sei bem que o artista é diferente, porque possui um poder de contemplação. 

    Poderia mesmo dizer-se que é uma testemunha, «a testemunha» no verdadeiro sentido da palavra. Em certas circunstâncias, ele é a única pessoa que «viu» o que se passou. Os outros agem, sentem, mas o artista viu e pode recordar.

    - Em seu entender, o artista será, pois, um homem superior?

    Não, necessariamente. Acredito que a criação humana é universal. Sim, penso que qualquer homem possui uma capacidade criadora, nunca desprezível e incessante. A todo o instante se pode encontrar no interior de qualquer homem, por mais insignificante que seja, a sua força criadora. E isso é que é belo.

    *O Roman de Renart (Romance de Renart) é o mais famoso conjunto de histórias de animais produzido na Idade Média. Não é uma história, mas uma coleção de 26 capítulos composta por vários copistas e menestréis por volta do final do século XII e início do XIII. Ele foi inspirado nas Fábulas do antigo escritor grego Ésopo, e no poema épico de escárnio em latim de Nivardus, escrito em Gante por volta de 1150, chamado Ysengrin. Sob o pretexto da guerra interminável entre Renart, a raposa e Ysengrin, o lobo, a obra ilustra a natureza animal do homem e oferece uma crítica à sociedade cavaleiresca do mundo feudal. Este manuscrito bastante ilustrado, criado na primeira metade do século XIV, é uma cópia do raro manuscrito do romance. Miniaturas de estilo ingénuo celebram as façanhas da raposa, o mais astuto dos animais. Elas também ilustram as histórias, como o funeral de Lady Coppée, a galinha (f. 4r); a partida de Renart para as Cruzadas (f. 12v); o ataque ao castelo de Maupertuis (o covil do herói) por Tibert, o Gato; Noble, o Leão; Tardif, o caracol e Ysengrin, o Lobo, enquanto Reinart e seus filhos jantavam descontraídos (f. 14v); e a violação de Hersent, a esposa de Ysengrin (f. 16r).

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