maio 2019

Flexslider

    Maxim Jakubowski | Biografia

    Maxim Jakubowski (1944) é um escritor e crítico de crime, erótico, ficção científica e rock.

    Jakubowski nasceu em 1944 na Inglaterra, filho de pais russos-britânicos e polocos, mas foi criado na França. Jakubowski também morou na Itália e viajou bastante. 

    Jakubowski editou as antologias de ficção científica Twenty Houses of the Zodiac (1979), para a 37ª Convenção Mundial de Ficção Científica (Seacon '79) em Brighton, e Traveling Towards Epsilon, uma antologia da ficção científica francesa. Ele também contribuiu com um conto para essa antologia.

    Trabalhou na publicação de livros por muitos anos, o que deixou para abrir a livraria Murder One, a primeira livraria especialista em crime e mistério do Reino Unido. Ele contribui para uma variedade de jornais e revistas, e foi durante oito anos o colunista de crimes da Time Out e, de 2000 a 2010, o revisor de crimes do The Guardian. 

    Ele também é diretor literário do Crime Scene Festival de Londres e consultor do Festival Internacional de Filmes Misteriosos, Noir in Fest, realizado anualmente em Courmayeur, Itália. Ele é um dos principais editores do campo do crime, do mistério e da literatura erótica, no qual publicou várias antologias importantes, incluindo o livro anual Mamute de Melhor Nova Erótica e Melhor Crime Britânico. 


    Além disso, ele tem mais de 80 outras antologias no seu currículo, incluindo títulos como Vintage Crime, Pulp Fiction, Jack, o Estripador, o Kama Sutra e inúmeras áreas da cultura popular. Editou ainda várias listas clássicas como Black Box Thrillers para Zomba Books, Blue Murder para Simon & Schuster e (mais tarde) Xanadu, Eros Plus e Neon e o selo MaXcrime para editores britânicos John Blake Publishing. Também é tradutor de francês e italiano.

    Os seus romances incluem "É você que eu quero beijar", porque ela pensou que me amava, o estado de Montana, em ternura expressa, beija-me tristemente, confissões de um pornógrafo romântico e eu estava esperando por você. 

    As suas coleções de contos são Life in the World of Women, Fools for Lust e o colaborativo americano Casanova. 

    Ekaterina and the Night foi publicado em 2011 e combinou o crime com o erotismo, assim como o seu último romance "The Louisiana Republic".

    Existiram ainda rumores de ser um dos autores por trás do autor erótico best-seller Vina Jackson, mas nunca foi confirmado.

    Por muitos anos, Jakubowski foi Presidente do Prêmio Arthur C. Clarke e agora é presidente e juiz da estreia da Associação de Escritores de Crimes, John Creasey Dagger; ele também faz parte do comité da Associação de Escritores de Crimes e é comentador frequente de rádio e TV. Actualmente é vice-presidente da Associação de Escritores de Crimes.

    Ele escreveu o conto "Un Avocat pour Dolorès" sob o nome de pluma de "Adam Barnett-Foster". Quando perguntado por que ele usou esse nome quando ele já era conhecido e respeitado, ele é citado como tendo encolhido os ombros e dizendo Le pseudonyme fou vient de frapper - "O pseudônimo louco acabou de me atingir ..." 

    Jakubowski também escreveu vários livros sobre rock nos anos 80. 

    Com site em www.maximjakubowski.co.uk onde está a sua bibliografia completa.

    O discursivo argumentativo em Manuel Teixeira-Gomes

    Breves apontamentos sobre a argumentação

    A importância que a argumentação assume no presente na área da Linguística do Texto é uma recuperação do seu valor na Antiguidade, pois, indissociável da retórica, esta é, inicialmente, “uma «arte de convencer», ligada a situações concretas que representam exclusivamente a necessidade de persuadir um auditório”.

    Está associada à invenção grega da democracia e das suas instituições: o tribunal com júris populares numerosos onde escutam os litigantes, ou o ágora, a assembleia de cidadãos, que também “ouve os oradores, delibera e toma decisões respeitantes à cidade, os ajuntamentos onde se pronunciam os elogios, por exemplo fúnebres, que permitem exaltar e enriquecer os valores da cidade”.

    A este tempo pertencem os dois primeiros períodos da retórica judicial ou argumentativa, segundo Breton e Gauthier, os períodos fundador e de maturidade. Depois, verifica-se progressivamente a separação entre a componente da argumentação retórica e a componente da argumentação mais “literária” da retórica, interessada nas figuras de estilo e modalidades de expressão: a componente argumentativa vê reduzida a sua importância, na medida proporcionalmente inversa ao êxito da demonstração e das ciências exactas e experimentais, sucesso esse que conhece o seu apogeu com Descartes.

    Historicamente, depois de Cícero, a soberania dos auditórios é transferida para o imperador, o que também promove a estética do discurso mais do que o seu carácter convincente. É o período do declínio, em finais do Império até meados do século XX, sendo, de acordo com os mesmos autores, este o momento do período da renovação: a retórica, na sua acepção da argumentação ou a “nova retórica”, assim designada pelo jurista e filósofo belga Chaïm Pereleman em Traité de l’argumentation: la rhétorique; deste estudioso e de Lucie Olbrechts-Tyteca renasce a retórica em 1958, juntamente com a investigação anglo-saxónica de Stephen Toulmin, materializada em The Uses of Argument.

    Hoje em dia, “retórica” é uma palavra polissémica, com sentido pejorativo em alguns contextos: se um discurso for apelidado de “retórico” o intuito é “anunciar o seu carácter superficial, artificial ou dissimulador”.

    Tendo em consideração o percurso da retórica até aos nossos dias, esta hoje recupera o seu primeiro sentido enquanto discurso argumentativo construído em função de um fim, e ultrapassa-o, na medida em que se reconhece em qualquer momento de comunicação a difusão de uma tese, cuja complexidade dependerá das características do discurso em que se insere.

    Ao considerar-se que a concepção de qualquer discurso tem um objectivo final, considera-se, igualmente, a necessidade de este ser um texto de relativa homogeneidade que tem em conta os conceitos (enunciados por van Dijk) de coesão (relações estabelecidas entre elementos) e coerência (boa formação textual). De um modo geral, pode associar-se as características macro-estruturais à coerência, e as características micro-estruturais à coesão. Num contexto de análise argumentativa, o objectivo poderá então consistir em assinalar: em termos de coerência, uma intenção discursiva argumentativa global no(s) texto(s); e, consequentemente, para efeitos de coesão, a sua articulação entre argumentos e conclusões.

    Por intenção argumentativa global entende-se a ideia ou objectivo final que o locutor pretende transmitir, que poderá ser explicitada no seu discurso, ou comunicada de modo mais ou menos disseminado, pois a argumentação é uma potencialidade intrínseca da língua.

    Perspectivas de estudo da argumentação

    Uma perspectiva de estudo da argumentação é a da Argumentation Dans la Langue de Ducrot, conjugada com um fenómeno anteriormente assinalado por Bakhtine, a polifonia, e que tem por base o conceito musical referente à sobreposição de diferentes partituras, derivando, depois, para a literatura e, finalmente, para linguística.

    Como termo linguístico, polifonia é a adaptação da teoria de Bakhtine à análise linguística de pequenos enunciados do discurso, pondo em causa o axioma da unicidade do sujeito falante, ou seja, uma única pessoa que fala por detrás de um enunciado.

    Ducrot acredita que “el autor de un enunciado no se expresa nunca directamente, sino que pone en escena en el mismo enunciado un cierto número de personajes. (...) el sentido del enunciado no es más que el resultado de las diferentes voces que allí aparecen”, e que estas vozes reflectem que “en un mismo enunciado hay presentes varios sujetos con status lingüísticos diferentes”.

    Desta forma, Ducrot define três categorias de pessoas ou funções que falam num enunciado: o sujeito falante: o ser empírico, real, o autor (portanto, exterior à produção linguística, e como tal, a sua identificação, não sendo um problema desta ordem, não é relevante do ponto de vista linguístico); o locutor: aquele que fala no texto e a quem se atribui a responsabilidade enunciativa; é uma entidade inerente ao cotexto linguístico (num contexto ficcional, poderá ser o narrador ou as personagens, alguém que revela pontos de vista ou dá entrada e saída às mesmas); e o(s) enunciador(es): é (são) o(s) ponto(s) de vista abstracto(s) apresentado(s) e que pode(m) ser identificado(s) com o do locutor.

    Na mesma linha de pensamento segue Grize, para quem é possível “concevoir l’argumentation d’un point de vue plus large [que não restrito a uma situação jurídica] comme une démarche qui vise à intervenir sur l’opinion, l’attitude, voire le comportement de quelqu’un”; por isso, na opinião deste autor, o leitorespectador é também actor, na medida em que se pode distinguir três momentos da sua actividade: receber (a disposição de reconstruir a esquematização de quem produziu o enunciado, e ter condições reais de o fazer), concordar (não ter objecções a apresentar à esquematização), e aderir (assimilar a esquematização do Outro).

    Os enunciadores são parcelas do locutor, perfazendo-o na sua totalidade. Ou, como afirma Jean-Blaise Grize, são imagens de quem fala, pois a partir do discurso de um emissor-A, é possível inferir a imagem que A pensa que o seu receptor-B tem de si próprio, e que pode, ou não, ser (re)construída por B no momento de descodificação do discurso. Somos, então, B que reconhece as imagens projectadas de A, no momento da descodificação e análise do texto.

    Note-se, então, que qualquer enunciado apela ao discurso do próprio locutor, mas também a pontos de vista ou perspectivas de outros sobre o tema ou assunto em questão. A noção do Outro é, assim, duplamente redimensionada: não só este está sempre presente, no sentido de que se fala sempre para alguém, como o seu ponto de vista de vista e de outros está incorporado no discurso do locutor.

    A teoria polifónica da enunciação de Ducrot está associada a uma perspectiva de argumentação na língua, na medida em que “plantea que las argumentaciones realizadas en el discurso están determinadas por las frases de la lengua y que esta argumentación es independiente, al menos parcialmente, de los hechos expresados en los enunciados.”

    Ou seja, apesar do significado do enunciado dar indicações sobre qual a conclusão (o mesmo é dizer “que ejerce una especie de coacción para imponer lo que debe ser la conclusión” ou uma intenção argumentativa global), o sentido de um enunciado consiste na descodificação dos pontos de vista (ou possíveis enunciadores) e nas origens dos mesmos, que compõem o potencial argumentativo do enunciado, sendo que as conclusões daí retiradas podem ser implícitas e assumidas ou não pelo enunciador.

    Deixando de lado a função argumentativa inerente a unidades lexicais demonstrada por Ducrot, o estudo da argumentação tem-se centrado em aspectos de coesão, nomeadamente sobre a função dos advérbios, conjunções e locuções conjuntivas que “jouent un rôle de connexion entre unités du discours“, considerando Adam que a intenção argumentativa de um discurso poderá também depender do uso destas palavras, dividindo os diferentes tipos de conectores de acordo com a sua função: os conectores que estabelecem uma simples função de conexão, os conectores que marcam enunciativamente o discurso, e os conectores argumentativos.

    Os conectores que estabelecem uma simples função de conexão são igualmente chamados de organizadores, pois “jouent un rôle important dans le balisage des plans de texte”, estabelecendo uma conexão simples, entendida como segmentar e religar. Visto que “ordonnent les éléments de la représentation discursive sur les deux axes majeurs du temps et de l’espace“, podem  subdividir-se em organizadores espaciais (ex.: à esquerda, à direita, à frente, atrás, um ao lado do outro…), organizadores temporais (ex.: então, de seguida, [e] depois, a véspera, agora…), e ainda em organizadores enumerativos que segmentam e ordenam o discurso (ex.: e, ou, também, primeiro, por último…).

    O segundo tipo de conectores, também designados conectores de reformulação que reflectem uma retoma metalinguística (ex.: quer dizer, dito de outra forma, em uma palavra…), podem associar a essa retoma metalinguística uma marca comparável àquela dos marcadores de integração linear conclusivos (ex.: em suma, finalmente, em conclusão…).

    Por fim, os conectores argumentativos reúnem as funções de segmentação dos enunciados e de responsabilidade enunciativa:

    Ils orientent argumentativement la chaîne verbale en déclenchant un retraitement d’un contenu propositionnel comme un argument, soit comme une conclusion, soit comme un argument chargé d’étayer ou de renforcer une inférence ou encore comme un contre-argument.

    O autor considera que desta última categoria fazem parte os organizadores argumentativos e concessivos (ex.: mas, no entanto…); os introdutores de explicação e de justificação (ex.: porque, visto que…), o se hipotético, e os simples marcadores de um argumento (ex.: mesmo, não somente…).


    Análise de textos

    Pela sua natureza reflexiva, como excelentes exemplos de produção de enunciados premeditados, serão objecto de análise textos do domínio discursivo literário: exemplos de «A Cigana» e «Margareta», da colecção Novelas Eróticas, de Manuel Teixeira-Gomes.

    Nos exemplos, o(s) locutor(es) (aqui entendido segundo Ducrot, apresenta(m) alguma homogeneidade de texto para texto, que deverá(ão) ser categorizado como personagem complexa, principalmente considerando o conjunto das novelas: uma personagem que mascara a vaidade pessoal de se ter relacionado com algumas belas mulheres, e de cujo término de relação se descompromete, ao atribuir a responsabilidade a terceiros, amplificando o efeito narcisista, na medida em que se considera especial pelas experiências vividas.

    Recorde-se que Ducrot defende que a tentativa de convencer o Outro é uma capacidade intrínseca da língua, bem como a característica de algumas palavras possuírem um conteúdo argumentativo inerente, os conectores. A teoria polifónica da enunciação parte do conceito de polifonia discursiva de Ducrot, que considera a presença de diferentes sujeitos com estatutos linguísticos distintos num enunciado, representando pontos de vista diferentes partilhados por um locutor.

    «A Cigana», uma novela composta por uma carta que antecede a narrativa propriamente dita (os envolvimentos românticos do locutor com três jovens na Andaluzia), pode ser analisada de acordo com os princípios enunciados por Ducrot, sendo distinguíveis as seguintes vozes: do autor empírico, aquele cujo nome figura na capa, Manuel Teixeira-Gomes, personagem de carne e osso, e que escreve uma carta (ou que escreve uma narrativa) para António Patrício, personagem também real; do locutor, aquele que fala no Presente do Indicativo e revela as suas experiências passadas a um destinatário; e ainda de enunciadores diversos, como por exemplo, os ecos de uma personagem amiga do locutor chamada Pepe Cuadrado.

    Tendo em conta alguns dos enunciados de «A Cigana», podemos constatar que no enunciado “Os meus amigos, a fina flor da estúrdia sevilhana, já troçam da minha indecisão.” subsistem vozes de diferentes origens: para além do locutor (que coincide com a figura de um enunciador), existe um enunciador que corresponde a quem fala na parte do enunciado considerada sintacticamente o aposto, que especifica quem são os amigos do locutor e representa o discurso de uma consciência cívica e moral sevilhana (“a fina flor da estúrdia sevilhana”); é apresentado também um terceiro enunciador que constata o eco dos discursos gozadores dos amigos do locutor condensados numa só frase (“já troçam da minha indecisão”).

    Um outro exemplo onde existem mais de dois locutores diferentes é “Esa mujer – observa ele – no pasa de una vulgar criminal. Goza con tus sufrimientos.”, divisível num primeiro enunciado da autoria do locutor, “observa ele”, e num conjunto de outros enunciados “-Esa mujer no pasa de una vulgar criminal. Goza con tus sufrimientos”.

    Este último tem como locutor Pepe Cuadrado e diversos enunciadores cuja identificação é mais complexa que os enunciados anteriores: um primeiro enunciador que corresponde àquele que reproduz a expressão “criminosa vulgar” utilizada para descrever aqueles que tenham cometido algum acto ilícito de pequena monta; um segundo que reflecte o uso da mesma expressão utilizada normalmente para “criminosos de segunda” associada a pessoas de má índole e que, por isso, deveriam receber qualquer tipo de castigo como os delinquentes; um outro enunciador que utiliza a expressão “criminoso vulgar” no campo amoroso para quem não respeita os sentimentos do outro, devendo também ser castigado; e por fim, um quarto enunciador que faz o mesmo uso da expressão que o terceiro enunciador, mas que também lhe atribui um contexto, visto que se refere à noiva do amigo, e que acrescenta que esta não o respeita, partilhando a responsabilidade de também ser o locutor destes enunciados e contribuindo para a formação de auréola de simpatia em torno do amigo, apresentando-o com uma atitude subserviente perante a noiva.

    Desta forma, é possível percepcionar que em «A Cigana» existe um locutor que relata um acontecimento, e que ao reproduzir em discurso directo ou no seu próprio discurso o que outras personagens e outras vozes disseram parece crer tornar a história mais verosímil ou credível, mais fácil de lhe ser atribuível crédito por quem leia o discurso do locutor, na medida em que existem várias vozes que expressam ideias como as suas, tratando-se também de uma partilha da responsabilidade enunciativa, como é o caso de alguns discursos de Pepe Cuadrado sugerindo um castigo para a noiva do amigo (telepatia do que Cigana havia dito na noite anterior, quando se relacionava com o locutor, levando a noiva a ter uma síncope), o que contribui para uma leitura final dos acontecimentos.

    Depende, então, do leitor deixar-se seduzir pela argumentação do seu locutor: ou ingénuo, acredita nas suas palavras e não valoriza o desenlace inverosímil: o ataque da noite provocado pela telepatia da noite anterior.

    Portanto, no caso de «A Cigana», de acordo com Grize, ou recebe, concorda e adere ao relato; ou alerta da intenção persuasiva inerente a toda a produção linguística, põe em causa o contrato implícito entre o locutor e o seu interlocutor, e recebe, mas não concorda nem adere ao discurso do Outro.

    Admitindo-se que num texto literário se manifeste a intenção de convencer o leitor da conclusão a que deve chegar ou aderir, esse objectivo poderá ser dissimulado ao longo do texto; no entanto, tendo em conta que o final da narrativa é a última oportunidade para persuadir o leitor do ponto de vista do locutor, tomar-se-á em conta alguns dos parágrafos finais.

    Em «Margareta», quer-se fazer crer que o Destino interveio e não quis que o locutor e Margareta se reencontrassem, pois o este tinha-se demorado em várias cidades no seu caminho até ao local combinado. Este facto, juntamente com a parecença física constantemente notada pela comitiva da jovem com alguém que prejudicaria o seu pai nos negócios, deverá ser contabilizado como mais uma adversidade.

    Apesar de se isentar de qualquer responsabilidade em relação aos acontecimentos, a lembrança de Margareta no presente, marcada pelo marcador temporal “ainda hoje”, é agri-doce, e precursora da frase contraditória na qual o locutor afirma, apesar de não ter qualquer tipo de culpa (repare-se na expressão “sem culpa alguma” destacada entre vírgulas), recordar-se de Margareta com remorso.

    Ainda lhe escrevi mas as cartas voltaram-me recambiadas por insuficiência de endereço. Esperaria ela que eu a fosse buscar à América? Isso era, precisamente, o que teria feito… se pudesse. Pobre Margareta! e pobre de mim, que, sem culpa alguma, ainda hoje a sualembrança me atormenta como um remorso…

    Atente-se no uso do conector organizador “mas” (opõe dois argumentos orientados para conclusões diferentes, enfatizando a segunda), iniciando a frase na qual o locutor se isenta de toda e eventual culpa por não se ter dado o reencontro, apesar de ele ter tentado reatar a comunicação entre ambos através do expediente ao seu alcance.

    A hipótese de procurá-la na sua terra é assim descartada, por falta de meios próprios, resumida na expressão pronominal anafórica “isso” e enfatizada pelo advérbio de modo “precisamente”, que confirma o ponto de vista enunciativo do locutor, ou seja, a acção que teria sido empreendida caso tivesse disponibilidade para tal.

    Conclusão

    No início, foi assinalado o facto da argumentação ter sido primeiramente encarada como um fenómeno exclusivamente retórico. Hoje é objecto de estudo dos pontos de vista discursivo e linguístico através, por exemplo, da análise da intenção do locutor, obediente aos princípios da boa coerência textual, alicerçada na escolha lexical em geral, e dos conectores em particular, para além de atribuir um papel activo a todos os enunciadores discursivos e ao próprio leitor na descodificação do conteúdo.

    Ducrot e a sua teoria Argumentation dans la Langue (a argumentação no seu sentido lato), na qual a tentativa de convencer o Outro é uma capacidade intrínseca da língua, bem como a característica de algumas palavras possuírem um conteúdo argumentativo intrínseco, os conectores, são exemplos de enquadramentos teóricos de estudo, tal como Grize que não restringe a argumentação a situações jurídicas, concebe-a como “une démarche qui vise à intervenir sur l’opinion, l’attitude, voire le comportement de quelqu’un”; por isso, na opinião deste autor, o leitor-espectador é também actor, na medida em que se pode distinguir três momentos da sua actividade: receber (a disposição de reconstruir a esquematização de quem produziu o enunciado, e ter condições reais para o fazer), concordar (não ter objecções a apresentar à esquematização), e aderir (assimilar a esquematização do Outro).

    A tese argumentativa defendida implicitamente pelo locutor destes exemplos foi a de que outrora se relacionou acidentalmente com mulheres belíssimas cujo desfecho de relação tem sempre algo de curioso, e do qual se demarca em termos de responsabilidade.

    A sua desresponsabilização pode ser disseminada pela interferência de outras personagens, seja através da presença do Destino sugerida na narrativa, pelo encaixe subtil do discurso de outrem ou visível através do desdobramento de vários enunciadores de acordo com a polifonia discursiva, o que permite estabelecer um padrão narrativo ou assinalar a composição de uma estratégia argumentativa.

    Em suma, tendo por objecto os exemplos em estudo neste trabalho, esta apresentação dedicou-se a abordar a temática da argumentação como elemento intrínseco ao discurso humano.


    Excerto do artigo "O discursivo argumentativo em algumas novelas de Manuel Teixeira-Gomes" de Carla Teixeira
    Investigadora do Centro de Linguística da Universidade NOVA de Lisboa
    http://jiclunl.fcsh.unl.pt/wp-content/uploads/sites/43/2018/02/IFPL_Carla-Teixeira.pdf

    Manuel Teixeira-Gomes | Biografia (1860-1941)

    Nascido em Portimão, a 27 de Maio de 1860, numa casa com janela para o rio Arade, cedo apreendeu a beleza do azul do mar do Algarve. O movimento dos veleiros e dos vapores que demandavam o porto era um permanente desafio à viagem que o levaria a percorrer o Mediterrâneo, de Marrocos à Turquia. 

    Descendente de homens familiarizados com os países do Norte – Bélgica, Holanda e Inglaterra e também a França, foi criado num ambiente cultural cosmopolita. A cultura francesa chegava regularmente a sua casa, através de jornais e revistas.

    A atmosfera muçulmana, que o envolvia no Algarve e na Andaluzia, seduziu-o e fê-lo viajante nómada em terras da moirama – o espaço magrebino bem conhecido dos portugueses e marcado por uma relação colonial com a França.


    A educação em casa dos pais completou-a no colégio particular S. Luís Gonzaga, em Portimão, frequentado pelas elites locais, e no Seminário de Coimbra. A cultura clássica, a filosofia, a literatura e a arte moldaram-lhe uma sensibilidade rara para a estética e para a interiorização do mundo cuja legibilidade o tornou um homem singular. 

    Não concluiu os estudos em Medicina, contrariando a vontade dos pais, preferindo a boémia literária nos cafés e círculos culturais de Lisboa e do Porto. Relacionou-se com escritores, jornalistas, pintores e futuros políticos republicanos.

    José Libânio Gomes, seu pai, era um abastado comerciante com recursos bastantes para garantir uma boa formação aos seus quatro filhos. O espírito rebelde do filho mais velho e a recusa do academismo obrigou-o a intervir no seu futuro, exigindo o regresso a casa. Com pouco mais de vinte anos, desolado, desterrado no “buraco do mundo”, o jovem Manuel Teixeira Gomes procurou lenitivo para o seu isolamento na contemplação das paisagens, na leitura, na escrita e na viagem. 

    Viagens de negócios para os países frios e sombrios do Norte, viagens de ócio para o Sul luminoso – Andaluzia, Catalunha, Norte de África, Itália, Grécia, Ásia Menor. Conciliava a sua vida de “lavrador abastado” com a escrita. Foi um período frutuoso, sob o ponto de vista literário pois publicou cinco livros até ao advento da República: Inventário de Junho (1899), Cartas sem moral nenhuma (1903), Agosto azul (1904), Sabina Freire (1905) e Gente Singular (1909), além de artigos em jornais e revistas.

    Em 1910, muitos dos seus amigos, companheiros do Seminário ou da boémia lisboeta e portuense, envolveram-se na revolução republicana. Ele estava em Portimão, onde desenvolvia intensa actividade política, e logo foi chamado para servir a República. Ministro plenipotenciário em Londres, por nomeação de Bernardino Machado em 1911, teve uma acção decisiva no reconhecimento do novo regime republicano pela monarquia britânica e na participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, ao abrigo da aliança luso-britânica. Chefiou a delegação portuguesa à Sociedade das Nações (1922) que o elegeu vice-presidente. 

    Em 5 de Outubro de 1923 tomou posse como 7º presidente da República Portuguesa, cargo que desempenhou até 11 de Dezembro de 1925. Renunciou ao cargo que desempenhara com ética e fidelidade às instituições democráticas, incapaz de resolver as gravíssimas dissensões políticas que minavam a vida parlamentar e impediam a governabilidade do país.


    Partiu para descansar, a bordo do cargueiro Zeus, em 17 de Dezembro de 1925, sem que deliberadamente renunciasse definitivamente ao seu país. Viajante nómada, recuperou a liberdade que perdera nos últimos 15 anos ao serviço da República. Revisitou todos os lugares que conhecera até 1910. 

    A sua terra de eleição era Florença, mas a ditadura fascista do “façanhudo” Mussolini criara um ambiente hostil à pura e descontraída fruição da arte. Optou por ficar no Magrebe, repartindo-se entre a Argélia e a Tunísia donde facilmente ia a Paris, cidade emblemática da cultura que o moldara. Como Nietzsche, “professava” uma espécie de “fé no Sul”, preferindo a margem magrebina à europeia.

    A escrita era o elo de ligação com o seu país. Dominado pela “febre epistolar”, escreveu milhares de cartas, correspondendo-se regularmente com mais de setenta pessoas, quase todas ligadas ao mundo das artes e das letras. 


    Do exílio, geriu a reedição das suas primeiras obras e a edição de seis novos livros: Cartas a Columbano (1932), Novelas eróticas (1935), Regressos (1935), Miscelânea (1937), Maria Adelaide (1938) e Carnaval Literário (1939). Londres Maravilhosa seria publicada em 1942, um ano após a sua morte, graças ao seu amigo Castelo Branco Chaves que preparou também a edição de uma selecção de Cartas a Políticos e diplomatas (1960).

    Era doente do coração, fruto da escarlatina que tivera na infância, e sofria de um glaucoma congénito que lhe provocava cegueira progressiva. Adoeceu em Bougie, cidade na costa argelina, que lhe lembrava Sintra pelo recorte das montanhas da Cabília e Portimão, pelo mar fronteiro. Em 5 de Setembro de 1931, instalou-se no Hotel l’Étoile e o quarto nº 13 foi a sua casa durante uma década. 

    Aí morreu, em 18 de Outubro de 1941, sem nunca mais ter visto a família. Os seus restos mortais trasladados para o cemitério de Portimão em 1951.

    Carlos Drummond de Andrade | O Amor Natural

    Guardados durante anos, os poemas eróticos de Carlos Drummond de Andrade estão reunidos nesta excepcional colectânea.

    O Amor Natural é uma obra inquietante, pois revela uma face nova, mais despojada, porém extremamente fascinante, do poeta. São textos repletos de vida e sensualidade, onde o autor se introverte ao mesmo tempo em que se expõe, desbravando o corpo enquanto busca, na fluidez e sensualidade da linguagem, a própria nudez da alma.


    Quase todos os poemas encontrados aqui são inéditos, à exceção de uns poucos publicados em revistas eróticas durante a década de setenta. Apesar de muitos deles terem servido de base para uma tese sobre o erotismo drummondiano, o autor optou por guardá-los em segredo, confiando aos seus herdeiros a tarefa de publicá-los após a sua morte.

    Embora o senso de humor e a leveza — traços marcantes do estilo do autor — estejam presentes em toda a obra, o elemento mais forte é, sem dúvida, a paixão, a sensualidade à flor da palavra.

    Como define Affonso Romano de Sant’Anna, as palavras às vezes copulam semanticamente, e o que encontramos nestas páginas é o êxtase poético de um autor que, ao mergulhar fundo nas suas próprias sensações, desnuda também o leitor, que se vê frente a frente com as suas próprias contradições ao pensar nos limites entre o erótico e o pornográfico, o sexo e o amor.


    AMOR — POIS QUE É PALAVRA ESSENCIAL

    Amor — pois que é palavra essencial
    comece esta canção e toda a envolva.
    Amor guie o meu verso, e enquanto o guia,
    reúna alma e desejo, membro e vulva.

    Quem ousará dizer que ele é só alma?
    Quem não sente no corpo a alma expandir-se
    até desabrochar em puro grito
    de orgasmo, num instante de infinito?
    O corpo noutro corpo entrelaçado,
    fundido, dissolvido, volta à origem
    dos seres, que Platão viu contemplados:
    é um, perfeito em dois; são dois em um.

    Integração na cama ou já no cosmo?
    Onde termina o quarto e chega aos astros?
    Que força em nossos flancos nos transporta
    a essa extrema região, etérea, eterna?

    Ao delicioso toque do clitóris,
    já tudo se transforma, num relâmpago.
    Em pequenino ponto desse corpo,
    a fonte, o fogo, o mel se concentraram.

    Vai a penetração rompendo nuvens
    e devassando sóis tão fulgurantes
    que nunca a vista humana os suportara,
    mas, varado de luz, o coito segue.

    E prossegue e se espraia de tal sorte
    que, além de nós, além da própria vida,
    como ativa abstração que se faz carne,
    a idéia de gozar está gozando.

    E num sofrer de gozo entre palavras,
    menos que isto, sons, arquejos, ais,
    um só espasmo em nós atinge o clímax:
    é quando o amor morre de amor, divino.

    Quantas vezes morremos um no outro,
    no úmido subterrâneo da vagina,
    nessa morte mais suave do que o sono:
    a pausa dos sentidos, satisfeita.

    Então a paz se instaura. A paz dos deuses,
    estendidos na cama, qual estátuas
    vestidas de suor, agradecendo
    o que a um deus acrescenta o amor terrestre.


    A MOÇA MOSTRAVA A COXA
                                              Visu, colloquio  
    Contactu, basio  
    Frui virgo dederat; Sed aberat  
    Linea posterior  Et melior  Amori.  
    (Carmina Burana)

    A moça mostrava a coxa,
    a moça mostrava a nádega,
    só não me mostrava aquilo
    — concha, berilo, esmeralda —
    que se entreabre, quatrifólio,
    e encerra o gozo mais lauto,
    aquela zona hiperbórea,
    misto de mel e de asfalto,
    porta hermética nos gonzos
    de zonzos sentidos presos,
    ara sem sangue de ofícios,
    a moça não me mostrava.
    E torturando-me, e virgem
    no desvairado recato
    que sucedia de chofre
    à visão dos seios claros,
    sua pulcra rosa preta
    como que se enovelava,
    crespa, intata, inacessível,
    abre-que-fecha-que-foge,
    e a fêmea, rindo, negava
    o que eu tanto lhe pedia,
    o que devia ser dado
    e mais que dado, comido.
    Ai, que a moça me matava
    tornando-me assim a vida
    esperança consumida
    no que, sombrio, faiscava.
    Roçava-lhe a perna. Os dedos
    descobriam-lhe segredos
    lentos, curvos, animais,
    porém o máximo arcano,
    o todo esquivo, noturno,
    a tríplice chave de urna,
    essa a louca sonegava,
    não me daria nem nada.
    Antes nunca me acenasse.
    Viver não tinha propósito,
    andar perdera o sentido,
    o tempo não desatava
    nem vinha a morte render-me
    ao luzir da estrela-d’alva,
    que nessa hora já primeira,
    violento, subia o enjôo
    de fera presa no Zôo.
    Como lhe sabia a pele,
    em seu côncavo e convexo,
    em seu poro, em seu dourado
    pêlo de ventre! mas sexo
    era segredo de Estado.
    Como a carne lhe sabia
    a campo frio, orvalhado,
    onde uma cobra desperta
    vai traçando seu desenho
    num frêmito, lado a lado!
    Mas que perfume teria
    a gruta invisa? que visgo,
    que estreitura, que doçume,
    que linha prístina, pura,
    me chamava, me fugia?
    Tudo a bela me ofertava,
    e que eu beijasse ou mordesse,
    fizesse sangue: fazia.
    Mas seu púbis recusava.
    Na noite acesa, no dia,
    sua coxa se cerrava.
    Na praia, na ventania,
    quanto mais eu insistia,
    sua coxa se apertava.
    Na mais erma hospedaria
    fechada por dentro a aldrava,
    sua coxa se selava,
    se encerrava, se salvava,
    e quem disse que eu podia
    fazer dela minha escrava?
    De tanto esperar, porfia
    sem vislumbre de vitória,
    já seu corpo se delia,
    já se empana sua glória,
    já sou diverso daquele
    que por dentro se rasgava,
    e não sei agora ao certo
    se minha sede mais brava
    era nela que pousava.
    Outras fontes, outras fomes,
    outros flancos: vasto mundo,
    e o esquecimento no fundo.
    Talvez que a moça hoje em dia…
    Talvez. O certo é que nunca.
    E se tanto se furtara
    com tais fugas e arabescos
    e tão surda teimosia,
    por que hoje se abriria?
    Por que viria ofertar-me
    quando a noite já vai fria,
    sua nívea rosa preta
    nunca por mim visitada,
    inacessível naveta?
    Ou nem teria naveta…


    EM TEU CRESPO JARDIM, ANÊMONAS CASTANHAS

    Em teu crespo jardim, anêmonas castanhas
    detêm a mão ansiosa: Devagar.
    Cada pétala ou sépala seja lentamente
    acariciada, céu; e a vista pouse,
    beijo abstrato, antes do beijo ritual,
    na flora pubescente, amor; e tudo é sagrado.


    A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

    A bunda, que engraçada.
    Está sempre sorrindo, nunca é trágica.

    Não lhe importa o que vai
    pela frente do corpo. A bunda basta-se.
    Existe algo mais? Talvez os seios.
    Ora — murmura a bunda — esses garotos
    ainda lhes falta muito que estudar.

    A bunda são duas luas gêmeas
    em rotundo meneio. Anda por si
    na cadência mimosa, no milagre
    de ser duas em uma, plenamente.

    A bunda se diverte
    por conta própria. E ama.
    Na cama agita-se. Montanhas
    avolumam-se, descem. Ondas batendo
    numa praia infinita.

    Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
    na carícia de ser e balançar.
    Esferas harmoniosas sobre o caos.

    A bunda é a bunda,
    redunda.


    O CHÃO É CAMA

    O chão é cama para o amor urgente,
    amor que não espera ir para a cama.
    Sobre tapete ou duro piso, a gente
    compõe de corpo e corpo a úmida trama.

    E para repousar do amor, vamos à cama.


    A LÍNGUA LAMBE

    A língua lambe as pétalas vermelhas
    da rosa pluriaberta; a língua lavra
    certo oculto botão, e vai tecendo
    lépidas variações de leves ritmos.

    E lambe, lambilonga, lambilenta,
    a licorina gruta cabeluda,
    e, quanto mais lambente, mais ativa,
    atinge o céu do céu, entre gemidos,

    entre gritos, balidos e rugidos
    de leões na floresta, enfurecidos.


    MIMOSA BOCA ERRANTE

    Mimosa boca errante
    à superfície até achar o ponto
    em que te apraz colher o fruto em fogo
    que não será comido mas fruído
    até se lhe esgotar o sumo cálido
    e ele deixar-te, ou o deixares, flácido,
    mas rorejando a baba de delícias
    que fruto e boca se permitem, dádiva.

    Boca mimosa e sábia,
    impaciente de sugar e clausurar
    inteiro, em ti, o talo rígido
    mas varado de gozo ao confinar-se
    no limitado espaço que ofereces
    a seu volume e jato apaixonados,
    como podes tornar-te, assim aberta,
    recurvo céu infindo e sepultura?

    Mimosa boca e santa,
    que devagar vais desfolhando a líquida
    espuma do prazer em rito mudo,
    lenta-lambente-lambilusamente
    ligada à forma ereta qual se fossem
    a boca o próprio fruto, e o fruto a boca,
    oh chega, chega, chega de beber-me,
    de matar-me, e, na morte, de viver-me.

    Já sei a eternidade: é puro orgasmo.


    BUNDAMEL BUNDALISBUNDACOR BUNDAMOR

    Bundamel bundalis bundacor bundamor
    bundalei bundalor bundanil bundapão
    bunda de mil versões, pluribunda unibunda
                          bunda em flor, bunda em al
                          bunda lunar e sol
                          bundarrabil

    Bunda maga e plural, bunda além do irreal
    arquibunda selada em pauta de hermetismo
                            opalescente bun
                            incandescente bun
    meigo favo escondido em tufos tenebrosos
    a que não chega o enxofre da lascívia
    e onde
    a global palidez de zonas hiperbóreas
    concentra a música incessante
    do girabundo cósmico.

    Bundaril bundilim bunda mais do que bunda
    bunda mutante/renovante
    que ao número acrescenta uma nova harmonia.
    Vai seguindo e cantando e envolvendo de espasmo
    o arco de triunfo, a ponte de suspiros
    a torre de suicídio, a morte do Arpoador
                      bunditálix, bundífoda
    bundamor bundamor bundamor bundamor.


    QUANDO DESEJOS OUTROS É QUE FALAM

    Quando desejos outros é que falam
    e o rigor do apetite mais se aguça,
    despetalam-se as pétalas do ânus
    à lenta introdução do membro longo.
    Ele avança, recua, e a via estreita
    vai transformando em dúlcida paragem.

    Mulher, dupla mulher, há no teu âmago
    ocultas melodias ovidianas.


    A CARNE É TRISTE DEPOIS DA FELAÇÃO

    A carne é triste depois da felação.
    Depois do sessenta-e-nove a carne é triste.
    É areia, o prazer? Não há mais nada
    após esse tremor? Só esperar
    outra convulsão, outro prazer
    tão fundo na aparência mas tão raso
    na eletricidade do minuto?
    Já se dilui o orgasmo na lembrança
    e gosma
    escorre lentamente de tua vida.


    A OUTRA PORTA DO PRAZER

    A outra porta do prazer,
    porta a que se bate suavemente,
    seu convite é um prazer ferido a fogo
    e, com isso, muito mais prazer.

    Amor não é completo se não sabe
    coisas que só amor pode inventar.
    Procura o estreito átrio do cubículo
    aonde não chega a luz, e chega o ardor
    de insofrida, mordente
    fome de conhecimento pelo gozo.


    ESTA FACA

    “Esta faca
    foi roubada no Savóia”
    “Esta colher
    foi roubada no Savóia”
    “Este garfo…”

    Nada foi roubado no Savóia.
    Nem tua virgindade: restou quase perfeita
    entre manchas de vinho (era vinho?) na toalha,
    talvez no chão, talvez no teu vestido.

    O reservado de paredes finas
    forradas de ouvidos
    e de línguas
    era antes prisão que mal cabia
    um desejo, dois corpos.

    O amor falava baixo. Os gestos
    falavam baixo. Falavam baixíssimo
    os copos, os talheres. Tua pele
    entre cristais luzia branca.

    A penugem rala
    na gruta rósea
    era quase silêncio.
    Saíamos alucinados.

    No Savóia nada foi roubado.


    NO PEQUENO MUSEU SENTIMENTAL

    No pequeno museu sentimental
    os fios de cabelos religados
    por laços mínimos de fita
    são tudo que dos montes hoje resta,
    visitados por mim, montes de Vênus.

    Apalpo, acaricio a flora negra,
    e negra continua, nesse branco
    total do tempo extinto
    em que eu, pastor felante, apascentava
    caracóis perfumados, anéis negros,
    cobrinhas passionais, junto do espelho
    que com elas rimava, num clarão.

    Os movimentos vivos no pretérito
    enroscavam-se nos fios que me falam
    de perdidos arquejos renascentes
    em beijos que da boca deslizavam
    para o abismo de flores e resinas.

    Vou beijando a memória desses beijos.


    O QUE O BAIRRO PEIXOTO

    O que o Bairro Peixoto
    sabe de nós, e esqueceu!

    Rua Anita Garibaldi
    e Rua Siqueira Campos.
    (Francisco Braga,
    Décio Vilares
    nos espiando,
    fingem que não?)

    O calçadão na penumbra
    andança que vai e volta
    voltivai
    a derivar para o túnel
    em busca do hímen?
    Volta:
    banco de praça. Bambus.
    Bambuzal de brisa em ais.

    O bardo e a garota amavam-se
    nas guerras da Dependência.
    Seria brinco de amor
    ou era somente brinco.

    5 de Julho (fronteira
    do reino escuro)
    à face
    de casas desprevinidas
    jogávamos nos jardins
    e nas caixas de correio
    volumes indesculpáveis
    de alheias dedicatórias
    pedacinhos.

    Se salta o cachorro? Credo.
    Saltam quinhentos mastins.
    Ganem a traça
    de amor sem regulamento.
    Prende mata esfola queima.
    Viu? É dentro de mim, é dentro
    do bardo que estão ganindo.

    Bobeira de bobo besta.
    Passa de nove mil horas,
    urge voltar ao sacrário
    de virgem.
    Só mais um tiquinho. Não.
    Sou eu, rei sábio, que ordeno.
    Ri. Rimos de mim. Ficamos.

    Dedos entrelaçados
    e desejos geminados
    no parque tão pueril.
    Praça Edmundo, olá,
    Bittencourt de berros brabos.
    Se acaso nos visse aos beijos
    babados, reincidentes,
    protestava no jornal?

    Menina mais sem juízo
    rindo riso sem motivo
    no jogo de diminutivos,
    sabe o que estamos fazendo?
    Amor.
    Não é nada disso. Apenas
    primícias cálidas. Calo-me.

    Viajar nos seios. Embaixo.
    Por trás.
    Se vou mais longe, quem vai
    me segurar?
    Se fico por aqui mesmo,
    quem vem
    me resserenar?

    Passo vinte anos depois
    no mesmo Bairro Peixoto.
    Ele que a tudo assistia,
    nada lembra, no sol posto,
    deste episódio canhoto.


    AS MULHERES GULOSAS

    As mulheres gulosas
    que chupam picolé
    — diz um sábio que sabe —
    são mulheres carentes
    e o chupam lentamente
    qual se vara chupassem,
    e ao chupá-lo já sabem
    que presto se desfaz
    na falácia do gozo
    o picolé fuginte
    como se esfaz na mente
    o imaginário pênis.


    PARA O SEXO A EXPIRAR

    Para o sexo a expirar, eu me volto, expirante.
    Raiz de minha vida, em ti me enredo e afundo.
    Amor, amor, amor — o braseiro radiante
    que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.

    Pobre carne senil, vibrando insatisfeita,
    a minha se rebela ante a morte anunciada.
    Quero sempre invadir essa vereda estreita
    onde o gozo maior me propicia a amada.

    Amanhã, nunca mais. Hoje mesmo, quem sabe?
    enregela-se o nervo, eisvai-se-me o prazer
    antes que, deliciosa, a exploração acabe.

    Pois que o espasmo coroe o instante do meu termo,
    e assim possa eu partir, em plenitude o ser,
    de sêmen aljofrando o irreparável ermo.


    Deana Barroqueiro | Contos Eróticos do Antigo Testamento

    Como escritora portuguesa de romance histórico, e de entre esses, os que abordam temáticas eróticas com relevo no modo de estar da antiguidade fica aqui esse registo, com enfoque nos seus livros 
    • Contos Eróticos do Antigo Testamento
    • Tentação da Serpente
    • Novos Contos Eróticos do Velho Testamento
    Fica aqui um excerto de "Contos Eróticos do Antigo Testamento’

    No Inicio ...... 

    Deus sentira-se de tal modo defraudado por a Sua criação mais auspiciosa - o Homem feito à Sua imagem e a Mulher feita segundo a imagem aperfeiçoada do Homem, para dominarem sobre todos os outros seres do Mundo - ter resultado tão defeituosa e rebelde que, depois de os fazer expulsar do jardim do Éden, apesar da insistência dos anjos, se mostrara inabalável na recusa de uma nova tentativa para criar a Humanidade.

    Apesar da Sua omnisciência (talvez devido ao cansaço de ter feito aquele imenso Mundo em apenas seis dias), no instante da criação do Homem sentira-se muito orgulhoso e satisfeito com a Sua obra e não lhe achara qualquer defeito ou mácula.

    Assim, na euforia que se seguiu, não vendo entre todos os animais desse Mundo uma companheira adequada para oferecer à Sua criatura, caíra na tentação de dar vida a um novo ser, feito à imagem do anterior, mas aperfeiçoando o modelo com a introdução de pequenas mas significativas diferenças.

    Como desejava um material mais raro do que o pó utilizado na primeira tentativa, adormeceu profundamente o Homem, nas margens do rio Tigre que limitava a Oriente o jardim do Éden, e tirou-lhe uma das costelas que substituiu por carne, esculpindo a partir do osso uma nova criatura em forma de Mulher.

    Ao contemplar a Sua obra, Deus achou-a tão bela que, em vez de lhe soprar a vida pelas narinas como fizera ao Homem, lha insuflou através dos lábios beijando-a e, com surpresa, sentiu pela primeira vez o Seu espírito vibrar de emoção nesse fugaz contato com a matéria. Deus conduziu a Mulher para junto do Homem que despertara e observou cheio de curiosidade a sua reação.

    Para Seu espanto, o Homem, ao ver diante de si aquele novo ser em toda a sua esplêndida nudez, não se ergueu do lugar, nem agradeceu a dádiva ao Criador, limitando-se a exclamar: - Esta é realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne! Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!

    Ouvindo estas frases, Deus admitiu pela primeira vez que talvez a sua melhor criação não fosse afinal tão perfeita no espírito como era na carne e pensou se não seria um risco pôr a árvore da ciência do bem e do mal ao seu alcance. Porém como já era tarde, retirou-se para descansar ao sétimo dia e não voltou a pensar no assunto.

    E, um dia, as Suas criaturas eleitas atraiçoaram-No e quando Deus os confrontou com o crime da rebeldia e da desobediência, o Homem culpou a Mulher e a Mulher culpou a Serpente pela tentação de provar o fruto proibido. E Deus, ferido no Seu orgulho e no Seu amor, vestiu-os com túnicas de peles e expulsou-os para sempre do Jardim das Delícias, antes que descobrissem o fruto da árvore da vida e vivessem eternamente.

    Apesar do seu arrependimento e das suas súplicas, Deus lançou-lhes terríveis maldições: - Tu, Mulher, por teres desejado ser mais inteligente do que o Homem e igual ao teu Deus, procurarás com paixão o teu marido, a quem serás sujeita. Aumentarei os sofrimentos da tua prenhez e parirás teus filhos com dor, suor e lágrimas. Chamar-te-ás Eva pois serás a mãe de todos os viventes.

    A Mulher chorou o Paraíso Perdido e a sua nova condição na terra. Em seguida, Deus amaldiçoou o Homem: - Tu, Homem, que provaste o fruto proibido da inteligência, procurarás o alimento, à custa de penoso trabalho, em todos os dias da tua vida e comerás o pão com o suor do teu rosto, até que voltes à terra de onde foste tirado: porque tu és pó e em pó te hás-de tornar! E todo o Homem nascido da tua semente há-de ser tentado e enganado pela Mulher, por toda a Eternidade, como tu foste pela tua.

    E Deus enviou querubins armados de espadas flamejantes expulsá-los do Paraíso, pela porta do Oriente, para as terras desérticas da futura Babilônia, entre os rios Tigre e Eufrates que Adão, o primeiro homem, deveria tornar férteis pelo esforço do seu lavor e castigo. Quando Deus acalmou a Sua ira e pôde pensar com serenidade nas duas criaturas caídas em desgraça, viu que dispunha apenas do casal primordial, Adão e Eva, para povoar o mundo e, como não queria voltar com a palavra atrás, criando novos seres, foi forçado a prolongar as suas vidas miseráveis assim como a dos seus descendentes, tornando-as férteis durante séculos para que a Humanidade pudesse crescer e multiplicar-se com algum sucesso.

    Mesmo assim o processo era tão lento que os Filhos de Deus, contrariando os desígnios do Pai, decidiram sair da esfera celeste e contribuir para o acréscimo da Humanidade, escolhendo entre as mais belas filhas dos Homens as que bem quiseram para mulheres e da sua união nasceram os gigantes e os famosos heróis dos tempos remotos, paridos em grande dor pelas filhas dos Homens, pois a maldição divina jamais fora levantada.

    Deus, tomando conhecimento da desobediência das forças celestes e da desordem cósmica que isso implicava, arrependeu-se mais uma vez de ter criado o Homem e a Mulher e, sofrendo amargamente, castigou de novo as Suas criaturas: - Não quero que o meu espírito permaneça indefinidamente no homem, pois o homem é carne, por isso, os seus dias não ultrapassarão os cento e vinte anos.

    E Deus enviou o Dilúvio e destruiu as terras da Mesopotâmia e todos os seres vivos, permitindo que apenas Noé com a sua família - a nona geração de Adão - e um casal de todos os animais em vias de extinção se salvassem numa arca, abrindo assim o caminho para uma nova Humanidade, num processo quase idêntico ao anterior. Deus contava com a efemeridade da vida a que havia condenado os homens e com a sua lentidão em crescer e se multiplicar, para tão cedo não ser importunado pelos seus erros e desacatos, nem ter de os vigiar, punir ou premiar pelos seus atos.

    E então Deus deixou os homens entregues a si próprios e esqueceu-se deles. Porém, contrariando os desígnios divinos, as forças celestes interessaram-se de novo pela Humanidade e, para acelerar o seu crescimento, concederam aos descendentes de Noé, tal como haviam feito aos de Adão, uma esperança de vida de mais de novecentos anos nos homens e uma juventude e fertilidade quase eternas nas mulheres, segundo consta nos registos do livro das gerações nascidas de Adão, de todos os Patriarcas de antes e depois do Dilúvio, no Livro do Génesis, que não enunciaremos aqui, por ser demasiado extenso e não servir os propósitos deste nosso conto.

    Os Cuidados de Abraão

    Pela vez primeira a nómada contemplara o corpo nu de um homem na força da juventude, moldado no exercício das armas e no requinte da corte, feito à imagem dos deuses, uma escultura de carne e osso, com músculos e tendões movendo-se como pequenas cobras irrequietas sob a pele macia e lisa, cor de cobre, brilhante de óleos perfumados.

    Sarai recordara com desgosto o corpo velho de Abraão, mole e enrugado, o hálito fétido dos dentes podres, o cheiro azedo a suor e a bedum de carneiro. A água era um bem demasiado precioso para ser desperdiçado em banhos e não havia erva defumadora que lograsse afastar das tendas e da própria pele dos pastores nómadas o fedor da urina quente e do sebo dos rebanhos a que todos acabavam por se habituar. Ela só se apercebera do seu cheiro depois de ter entrado no sumptuoso harém do Faraó.

    Quando Sebekhotep se deitara sobre o seu corpo para lhe tomar a flor da virgindade, enroscara-se nele como a hera no tronco firme da árvore que a sustenta, sentindo-o deslizar para dentro de si, com a dureza do bronze e a maciez de uma lâmina oleada. Fizera-lhe as carícias que Meryt lhe ensinara como sendo as mais doces ao seu prazer, percorrendo com os lábios e os dedos os caminhos secretos do seu corpo, até o sentir vibrar dentro de si. O ventre de Sarai latejara, quente e húmido, e eclodira por fim em ondas de êxtase quase dolorosas, como jamais experimentara no leito de Abraão.

    O virgo postiço rebentara e o sangue correra pelas coxas de Sarai quando Sebekhotep se retirara de dentro dela, sorrindo por vê-la perturbada. Porém, a vergonha da nómada não era devida à perda da virgindade, mas ao ardil usado para o enganar e que contara com a cumplicidade de Meryt, sempre desejosa de lhe satisfazer os mais ocultos desejos.

    A Governanta do Real Harém soubera desde o primeiro dia que a nómada já fora tocada por homem, mas Sarai confiara-lhe uma triste história de infância e ganhara a sua simpatia ou talvez a mulher não gostasse das favoritas Tadukhipa e Ahmose e tivesse visto na nova concubina uma rival capaz de as derrubar.

    Para o conseguir, teria de guardar segredo e proceder de modo a Sarai poder passar por virgem no leito de Sebekhotep, o que não era difícil de fazer, bastando um pequeno artifício muito comum entre as alcoviteiras de qualquer lugar do mundo e algum fingimento da parte da falsa virgem. Assim, antes de a conduzir à câmara do Faraó, Meryt dera-lhe um minúsculo saco de pele com sangue de galinha e ela introduzira-o na vagina. O embuste surtira o efeito desejado, todavia Sarai, enquanto se limpava
    do sangue impuro, chorara de humilhação e pejo.


    Arrancou-se à penosa lembrança para seguir com o olhar os movimentos da ruidosa cáfila, que rumava a leste e se perdia lentamente no horizonte, e o seu coração alegrou-se por não ter de partir com ela ao encontro de Abraão.

    Arrastada no torvelinho da paixão de Sebekhotep, aqueles últimos dias haviam sido para Sarai um tempo de turvação e encantamento. Tudo começara quando Meryt a viera buscar para a conduzir de novo ao harém e lhe vira na cabeça a coroa de flores de lótus com que o Divino Senhor a coroara graciosamente, beijando-a com ardor e ternura, antes de sair da câmara.

    – A coroa de lótus para uma filha do povo das areias?! – espantara-se a Governanta do Real Harém. – E logo na primeira noite? Terá Sarai poderes ocultos de feiticeira que Meryt desconhece?

    Sem parar de falar, passara revista aos aposentos, bisbilhotando tudo, e sorrira de aprovação ao descobrir as manchas de sangue no leito. Vendo o embaraço e a incompreensão da nómada, explicou:

    – A coroa de flores de lótus mostra que o Bom Deus te escolheu para sua favorita e isso é admirável, pois as concubinas reais são damas de sangue nobre, esposas, filhas ou irmãs dos grandes senhores da corte, jamais mulheres do povo e estrangeiras. Como conseguiste tal feito?

    Foram interrompidas por um mensageiro do Faraó, com um recado para a Governanta, que o ouviu, com um misto de agrado e espanto, chamando as servas que aguardavam na antecâmara.

    – Sebekhotep deu ordens para ocupares estes aposentos, com estas escravas para te servirem, guarda-roupa e jóias dignas de uma princesa.

    Se quiseres manter estes privilégios, trata de servir bem o Divino Senhor, pois vais fazer muitas inimigas no harém. Tadukhipa e Ahmose hão-de recorrer a toda a sua perfídia para tramar intrigas e causar a tua desgraça.

    Sarai passou a gozar da posição e privilégios de uma princesa da Casa Real de Tebas, a quem o poderoso Faraó do Egipto vinha visitar todos os dias, para lhe mostrar um mundo de coisas novas e admiráveis, ensinando-lhe os requintes de uma corte que fazia do luxo e do prazer uma arte. A pastora nómada de Ur surpreendera-se a ansiar por essas visitas, cada vez com maior inquietação e deleite, para se oferecer como cera macia às mãos divinas e, deslumbrada, deixar-se moldar segundo o desejo e a imaginação do mestre, tomando a forma das suas fantasias.

    George Bataille | O Erotismo

    Georges Bataille  foi um escritor francês, cuja obra se enquadra tanto no domínio da Literatura como no campo da Antropologia, Filosofia, Sociologia e História da Arte. 

    O erotismo, a transgressão e o sagrado são temas abordados nos seus escritos. Começou a escrever por sugestão de seu psicanalista, tendo o seu primeiro livro, "História do Olho", sido publicado em 1928, sob o pseudónimo de Lord Auch, que permanecerá até sua morte por vontade do autor, uma vez que o livro, com traços autobiográficos, foi escrito com a intenção de expurgar a sua mente, uma maneira de livrar-se das obsessões atormentadoras ou, como dizia, "Escrevo para apagar o meu nome".

    Após a "História do Olho", Bataille prossegue a sua obra erótica, tributária de Sade, e publica em 1937, sob o pseudónimo de Pierre Angélique, "Madame Edwarda". É uma ficção erótica onde encontramos seres angustiados e torturados por conflitos íntimos, que Bataille utiliza para nos mostrar a perda do indivíduo em torno das suas paixões até à morte.


    Esse gosto pela literatura levou-o a reunir em a "A Literatura e o Mal" diversos estudos onde analisa a obra de Emily Brontë, Baudelaire, Jules Michelet, William Blake, Sade, Proust, Kafka e Jean Genet, parcialmente publicados na revista "Critique", nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial. 

    Eles dão uma ideia do sentido que tinha a literatura para Bataille - a literatura é comunicação, impõe uma lealdade, uma moral rigorosa. Não é inocente. "A literatura é o essencial ou não é nada. O mal - uma forma penetrante do Mal - de que ela é a expressão tem para nós, creio eu, o valor soberano".

    Duas obras são fundamentais para compreendermos o pensamento de Bataille. Em "A Parte Maldita", Bataille procurou a elaboração de um pensamento sobre economia partindo da antropologia de Mauss, bastante distinta do liberalismo e do marxismo dominantes na sua época. É o único livro onde ele teria tentado construir sua visão de mundo: filosofia da natureza, filosofia do homem, filosofia da economia, filosofia da história (Jean Piel).

    Influenciado pela leitura de "O Ensaio Sobre a Dádiva"*, e a "A Noção de Despesa", que precede e origina o livro, Bataille sustenta que o consumir, e não o produzir, que o despender e não o conservar, que o destruir em vez de construir, constituem as motivações primeiras da sociedade humana. 

    Reinvertendo o princípio axiomático da primazia da produção sobre o consumo, Bataille traz para a interpretação da economia as análises que privilegiam as formas de circulação e que não se traduzem em medidas de valor.

    Ao sistematizar a sua teoria geral da circulação da energia sobre a terra, sempre numa espiral ascendente que dá o carácter de nossa sociedade, Bataille revela a influência da ideia de dádiva, onde ele nos mostra que existem outros princípios de troca fundadores da sociedade, onde impera a qualidade, como o sacrifício ritual, e que nos vinculam ao que está além do humano. 

    Rejeitando as teorias de Keynes, bem como o marxismo de juventude, Bataille construiu o seu pensamento insistindo na hipótese de uma abundância inevitável e inaceitável no mundo, cuja acumulação conduz à morte.


    Em "O Erotismo", Bataille continua essa linha de estudos. Ao encontrar no erotismo a chave que desvenda os aspectos fundamentais da natureza humana, o ponto limite entre o natural e o social, o humano e o inumano, Bataille vê-o como a experiência que permite ir além de si mesmo, superar a descontinuidade que condena o ser humano: "Falarei sucessivamente dessas três formas, a saber: o erotismo dos corpos, o erotismo dos corações e, finalmente, o erotismo sagrado. Falarei dessas três formas a fim de deixar bem claro que nelas o que está sempre em questão é substituir o isolamento do ser, a sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda".

    Dividida em duas partes, o livro expõe na primeira parte sistematicamente os diferentes aspectos da vida humana sob o ângulo do erotismo e na segunda, estudos independentes que tratam de psicanálise e literatura. 

    Estudioso de religiões orientais, experiências místicas e práticas estáticas e sacrificiais, Bataille nos leva a descobrir que "entre todos os problemas, o erotismo é o mais misterioso, o mais geral, o mais à distância". 

    Mostrando os efeitos de transgredir as interdições impostas milenáriamente por estes elementos desordenadores, Bataille dá ao erotismo e à violência uma dimensão religiosa, onde explora os meios para se atingir uma experiência mística "sem Deus": "um homem que ignora o erotismo é tão estranho quanto um homem sem experiência interior".

    O seu pensamento alimenta teóricos das mais diversas áreas. 

    A morte como destino da sociedade de consumo é essencial à doutrina de Jean Baudrillard; Deleuze e Guattari inspiram-se em Bataille para ver o mundo como espaço de várias alternativas possíveis à lógica do mercado, lugar onde desembocam pulsões e desejos, um mundo de novas estratégias não mercantis. 

    Ao reconhecer o excesso encarnado no desejo de transgredir os mitos no campo simbólico, Bataille contribuiu para uma geração de intelectuais projectarem da economia à psicanálise uma tonalidade impregnada de culturalismo que não cessa de mostrar-se como alternativa original e criativa de compreender o nosso mundo.

    *Ensaio sobre a dádiva, também conhecido como Ensaio sobre o dom é um livro de Marcel Mauss, publicado pela primeira vez em 1925, que versa sobre os métodos de troca nas sociedades tidas como primitivas. É reconhecido como o estudo de caráter etnográficoantropológico e sociológico mais antigo e importante sobre a reciprocidade, o intercâmbio e a origem antropológica do contrato.

    Michel Leiris | Espelho da Tauromaquia

    Dos 90 anos que viveu, Michel Leiris passou mais da metade a escrever a sua autobiografia. Iniciado em 1930 quando começou a redigir "L'Âge d'Homme", incitado por um tratamento psicanalítico, o seu projecto autobiográfico prevaleceu até mesmo sobre a vocação de etnólogo.

    Resultado de uma longa expedição pela África, o livro "L'Afrique Fantôme" é sobretudo um diário pessoal do viajante que, ao conhecer o outro, empreende a descoberta de si. 

    Foi, porém, com a publicação dos quatro volumes de "La Règle du Jeu" que o escritor renovou definitivamente as convenções da autobiografia, dando ao género uma contribuição equivalente à que "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust, representa para o romance.

    Projeto arriscado, sem dúvida, à medida que colocava o autor no centro do texto, desfazendo as fronteiras entre vida e obra. Para realizá-lo, Leiris transformou-se em personagem da sua literatura, mas sem ceder à composição de uma narrativa linear cujo herói seria construído à sua imagem. 


    Antes, ele preferiu dialogar com uma série de mitos, antigos ou modernos, que atuavam como pontos de identificação, oferecendo-lhe espelhos nos quais se podia contemplar. Entre as referências dessa mitologia pessoal, a tauromaquia ocupa um lugar especial.

    Já na versão original de "L'Âge d'Homme", o autor atentava para o impacto que os espectáculos das touradas lhe produziam: "Quando assisto a uma corrida, tenho a tendência de me identificar ora com o touro, no instante em que a espada é enterrada no seu corpo, ora com o toureiro, que corre o risco de ser morto (talvez emasculado?) por um golpe de chifre, no momento em que ele afirma o mais categoricamente a sua virilidade".

    Foi justamente esse golpe de chifre, e os perigos a ele subjacentes, que Leiris analisou a fundo num ensaio notável, em que investiga a tauromaquia como "um esquema análogo ao da tragédia antiga". 

    Escrito em 1938 é um livro no qual o escritor assume o "parti pris" do toureiro desde a composição do texto, avançando engenhosamente sobre o tema, numa reflexão que se torna, a cada passe, mais e mais arrojada.


    A ideia de sagrado percorre todo o ensaio. Leiris parte de um diagnóstico sombrio da sua época, ao aludir à incapacidade moderna de dar respostas às exigências de certos espectáculos violentos que, na qualidade de "lugares onde o homem tangencia o mundo e a si mesmo", colocam em jogo a totalidade da existência humana. 

    Na ordem geral das coisas, tais espectáculos teriam a função de "nos pôr em contato com o que há em cada qual de mais profundamente íntimo, de mais quotidianamente turvo e mesmo de mais impenetravelmente oculto".

    Percebem-se aí ecos de Nietszche, de quem Leiris foi leitor assíduo, já que o livro evoca o espírito da tragédia, em declínio num mundo marcado pela racionalização da crueldade. Tal evocação está na base das concepções de alguns dos mais lúcidos pensadores da sua geração, todos eles empenhados em interrogar a violência humana fora dos discursos humanistas que, desgastados na afirmação de um bem universal e abstrato, se revelavam mera retórica diante das evidências históricas de que o mal dizia respeito a toda a humanidade. 

    Entre eles estava Artaud, que Leiris conheceu na década de 20 quando ambos se aproximaram do surrealismo, e o amigo Georges Bataille, com quem fundou o Colégio de Sociologia, dedicado aos estudos de "antropologia mística".

    Contudo, embora compartilhasse dessa nostalgia do sagrado - que buscava conferir um sentido religioso à violência, vinculando o mal ao rito -, a visada de Leiris não era a mesma que a dos seus contemporâneos. 

    Menos apocalíptico que Artaud e menos enfático que Bataille, o discreto autor de "O Espelho da Tauromaquia" não se propôs fundar um espaço próprio, como foi o teatro da crueldade para o primeiro e a sociedade secreta "Acéphale"* para o segundo. Antes, preferiu valorizar as manifestações trágicas ainda vivas no mundo em que habitava.

    Se, no plano individual, reconhecia as faíscas do sagrado em certos rituais da infância - como expôs num texto capital, "Le Sacré dans la Vie Quotidienne", em que recorda as suas brincadeiras de criança -, no plano coletivo só a tauromaquia era capaz de lhe provocar tal revelação. 

    Com efeito, a instituição da corrida representa para Leiris o único rito moderno a assumir o aspecto de um desses "fatos reveladores que esclarecem partes obscuras de nós mesmos", na condição de "espelhos" que guardam a imagem de nossa emoção.

    À medida que contém um princípio trágico, diz o autor, a tauromaquia não é apenas um desporto, mas uma arte. Como tal, ela se estrutura sobre uma disciplina rígida em que as noções de ritmo, harmonia e equilíbrio são fundamentais. 

    Porém, diversamente de outras manifestações estéticas, a corrida comporta um risco que macula a própria ideia de beleza da arte, introduzindo um elemento acidental que "arranca o belo da sua estagnação glacial". 

    Por manter em contínua tensão esses dois pólos - regra e exceção -, a tourada abriga um jogo violento de contrastes, cujos equivalentes só se encontram nos atos humanos que desencadeiam experiências passionais.


    Não é por outra razão que Leiris aproxima a tauromaquia do transe religioso e da vertigem erótica: o contato do matador com o perigo exterior condensado nos chifres do touro sugere, por um curto espaço de tempo, o mesmo desejo de fusão entre sujeito e objeto que caracteriza os estados de êxtase. 

    O passe do toureiro é um movimento rumo à plenitude que, chegando a um paroxismo, tangencia o contato fatal, do qual o homem só consegue escapar por um triz. Diante dessa implacável ameaça de morte, a tauromaquia intervém com o elemento sagrado do sacrifício, oferecendo ao público extasiado um espelho no qual a imagem da finitude humana pode enfim ser contemplada.

    Mais que um aficionado, Michel Leiris não só se projetou nesse espelho como fez dele o arquétipo sagrado de sua própria atividade literária. 

    Em 1946, ele incluiu um prefácio em "L'Âge d'Homme", intitulado "De la Littérature Considerée comme une Tauromachie", no qual comparava o seu texto a uma arena, em que o exercício da arte implicava um risco de vida. 

    Estando então comprometido por inteiro com o projeto de escrever sobre si mesmo, aceitou o desafio de se colocar no centro da arena, expondo-se ao perigo de morte que repousa no horizonte de toda a obra autobiográfica.

    Créditos de: Eliane Robert Moraes, professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e autora, entre outros livros, de "Sade - A Felicidade Libertina" (Imago).

    *Acéphale (sem cabeça derivado do grego) é o nome de uma revista pública criada por Georges Bataille (que contou com cinco edições, de 1936 a 1939) e uma sociedade secreta formada por Bataille e outros que haviam jurado ficar em silêncio.

Feature