julho 2019

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    Alberto Moravia | Toda a minha vida gaguejei

    Saio de casa, olhando à direita e à esquerda, para ver se “ele” está lá. Moro numa rua das que se chamam particulares, ou melhor dizendo, sem saída, e ao longo da qual se rasgam, diante uns dos outros, os jardins de três ou quatro mansões. Vejo apenas um par de automóveis estacionados junto ao passeio e são automóveis de luxo, como de luxo é o bairro todo. “Ele”, pelo contrário, para me seguir, serve‑se de um carro utilitário, o qual, conveniente para se confundir no meio do trânsito da cidade, aqui, nesta rua de milionários, ressalta a vista como o automóvel de um milionário numa rua de gente pobre.

    Portanto, “ele” não está lá. Entro no meu carro com um sentimento de frustração angustiante: sem “ele”, que posso fazer agora, nesta primeira hora vazia da tarde? Na realidade, saí por causa dele. Queria enfrentá‑lo. Obrigá‑lo a uma explicação.

    Mas, quando ao acaso volto à esquerda e, no mesmo instante, ajusto o espelho retrovisor, eis que avisto o seu automóvel a seguir‑me. É um carro tão anônimo que, paradoxalmente, poderia distingui‑lo entre mil. Olho outra vez: através do pára‑brisas, vejo a cara dele, também esta completamente anônima. Mas é preciso entendermos, em primeiro lugar, acerca do que é o anônimo. Alguém poderia pensar, sei lá, num tipo do gênero funcionário público ou empregado de empresa privada, vestido corretamente e sem colorido. Não, anônimo, hoje, não é esse tipo de empregado ou funcionário; é antes o homem sem emprego. “ele” é anônimo dessa maneira. Bigodudo, cabeludo, com um vistoso blusão vermelho e encarnado e jeans, é verdadeiramente anônimo; como “ele”, na cidade, há milhares. É o novo anonimato, pitoresco, cuidadoso, ostensivo. Tanto poderá ser um rapaz sério, como um assassino, um intelectual, qualquer coisa ao acaso. Para mim, é “ele”, alguém que me segue há uma semana, espiando‑me onde quer que eu vá e seja a que horas for.

    Enquanto conduzo devagar para lhe permitir que me siga, recapitulo uma vez mais os motivos por que “ele” poderá andar atrás de mim. Afinal de contas, esses motivos reduzem‑se a um só: sou filho único de um pai riquíssimo e, por isso, provavelmente, muito odiado. Assim, as hipóteses sobre os objetivos da perseguição só podem ser duas: a hipótese a chamemos assim, realista e a hipótese, digamos, simbólica. A primeira, obviamente, comporta o sequestro com o fito de fazer com que o meu pai pague um resgate mais ou menos avultado; a segunda, menos obviamente, implica o homicídio, na medida em que serei o símbolo de uma certa situação. Se se quiser, em suma, trata‑se de atingir, através de mim, a sociedade da qual, apesar de contra vontade, faço parte.

    Ora, continuo a pensar, sinto‑me estranho, como realmente sou, a tudo isto. A tal ponto que não quis recorrer à polícia, já que, de certo modo, uma denúncia equivaleria a uma implicação. Não, nada de denúncias. Quero enfrentar o meu perseguidor e demonstrar‑lhe que está seguindo o homem errado e que, através de mim, nada poderá obter: nem dinheiro nem vingança.

    Vou conduzindo e, pouco depois, levo os olhos ao espelho do retrovisor para ver se continuo a ser seguido. Sim, lá vem “ele”. No entanto, surgem agora duas dificuldades. A primeira é superável: trata‑se do automóvel; se quiser enfrentá‑lo, tenho que estacionar e prosseguir a pé. A segunda, pelo contrário, é quase invencível: a minha gaguez. Sou gago num grau quase absoluto; só raramente consigo ir além da primeira sílaba da frase. Gaguejo, gaguejo e, subitamente, a frase acaba por ser completada pelo meu tão perspicaz como compadecido interlocutor. Então, aprovo com a cabeça, de modo entusiasta: não falei, mas fui compreendido como se o tivesse feito.

    Com “ele”, porém, tal método não funciona. Não posso realmente esperar que o meu assassino me complete as frases. É verdade que o fez esta manhã; mas isso ocorreu em circunstâncias tais que temi o pior. Julguem vocês. Entrei numa agência de viagens para reservar um lugar no avião para Londres, onde vou continuar os meus estudos de física. Como não consigo senão repetir: “O qua… o qua… o qua…”, “ele, que entretanto se pusera ao meu lado diante do balcão, completou com uma sinistra cortesia: “o senhor quer dizer o quatro. Também quero reservar um lugar para o mesmo dia.” Saí da agência bastante indisposto. Agora o tempo aperta, não só para mim, mas, sobretudo, para “ele. Antes da minha partida, tenho que o obrigar a todo o custo a uma explicação.

    Aqui está a entrada da garagem subterrânea onde guardarei o carro. Conduzo devagar, através da imensa sala mergulhada em penumbra, apinhada de automóveis alinhados em espinha entre colunas ciclópicas. Vejo que ele entrou na garagem atrás de mim e me segue a uma pequena distância. Avisto dois lugares vazios, viro bruscamente a direção e introduzo o automóvel na fila. Também ele vira e vem estacionar no espaço vazio, ao lado do meu lugar. Por um momento, penso em ter a explicação na garagem. Mas o deserto, o silêncio, a sombra do local dissuadem‑me: é exatamente o lugar ideal para arrumar um homem e continuar em frente como se nada tivesse acontecido. De resto, “ele” não parece interessado na garagem. Sai do carro, fecha a porta, precede‑me, caminhando entre um carro e outro, desaparece. Terá terminado a perseguição? Tenho que mudar de idéia, mal chego à escada rolante que me leva do subterrâneo à superfície. Vejo‑o, deixando se transportar para cima, dir‑se‑ia que completamente absorto, fumando pensativamente.

    Estou agora na via Veneto. Começo a descer a rua, com o ar de um estrangeiro que, após ter feito um almoço abundante e solitário, segue pelo passeio mais famoso de Roma com a intenção de abordar, ou melhor, de se fazer abordar por uma transeunte desocupada. É claro que não experimento qualquer desejo desse gênero. Mas a idéia de me comportar como se estivesse à procura de uma mulher agrada‑me, porque confirma aos meus olhos a minha já mencionada estranheza total em relação ao sistema de que decorre a perseguição destes últimos dias.

    Vou pensando nestas coisas e eis que, de repente, dou pela mulher que finjo procurar, ali, à minha frente, precedendo‑me alguns passos. É nova, mas com alguma coisa, no rosto e na pessoa, de cansado, desalentado e sutilmente impuro. Loura, a cor dos cabelos parece continuar no rosto e no pescoço, dourado por recentes banhos de mar, e depois na roupa: uma espécie de túnica de um amarelo velho, folha morta. Caminha rebolando‑se um pouco mais do que o normal, mas, até esse chamamento profissional, parece fazê‑lo com cansaço e desânimo. Em seguida, com uma tática previsível, pára diante da vitrine de uma loja qualquer e aplica‑se a apanhar no seu o meu olhar. Precisamente nesse momento, entrevejo o meu perseguidor barbudo, que se demora com ar entendido diante dos livros de bolso ingleses em exposição num quiosque. E então tenho uma idéia. Acrescento: uma idéia de gago que, na impossibilidade de comunicar pela palavra, recorre à linguagem figurada, metafórica: vou agarrar aquela mulher e servir‑me dela como de um sinal simbólico para transmitir uma mensagem ao sistema inimigo que me quer raptar ou matar.

    Dito e feito. Avizinho‑me dela e digo‑lhe: “Está livre? Podemos ir a um lugar qualquer”

    Milagre! Aconteceu tudo com tanta naturalidade que não me dei conta de que, pela primeira vez na minha vida, não gaguejei. Talvez a tensão própria de uma situação excepcional e ameaçadora tenha expulsado a gagueira. Falei! Falei! Falei! Sinto uma alegria desmesurada, profunda; ao mesmo tempo, uma gratidão imensa para com a mulher: como se a houvesse buscado toda a vida e finalmente a encontrasse, exatamente ali, no passeio da via Veneto. Ébrio de alegria, mal reparo que ela responde: “Vamos para minha casa, é aqui ao lado.” Ofereço‑lhe o braço e ela coloca o seu braço na minha mão, com um gesto intencional. Caminhamos não sei por onde durante uns dez minutos. Eis‑nos agora numa ruela deserta, com as suas casas velhas e modestas. Quando entramos no átrio comum, lanço uma olhadela por cima do ombro e vejo que “ele” ficou lá fora à minha espera, apoiado a um poste. Subimos dois andares a pé, a mulher tira da bolsa uma chave, abre uma porta, introduz‑me numa entrada sombria e depois numa saleta cheia de luz. Vou à janela, que se encontra aberta, e vejo que “ele” continua lá embaixo, na rua, olhando‑me descaradamente.

    A mulher está agora a meu lado e diz: “Fechamos a janela, não?” Então, em duas palavras, explico‑lhe o que quero dela: “Está vendo aquele rapaz, ali, no passeio defronte? É um amigo meu, muitíssimo tímido com mulheres. Pois bem, gostaria que você o provocasse, lhe tirasse a timidez. Não te peço mais nada para além disso: que se exiba à janela, por um instante apenas, nua, toda nua, sem nada em cima de você. Esse instante será o símbolo de tudo o que ele ignora.”

    Ela aceita com a maior prontidão: “Se é só isso que quer…” Com um gesto grandioso, como se levantasse o pano de cena sobre um cenário excepcional e nunca visto, inclina‑se, pega com as duas mãos na orla do vestido, sobe‑o de uma só vez até ao peito. Com surpresa, vejo então que não tem nada por baixo do vestido, quase, diria, premeditadamente. Nua dos pés aos seios, o pequeno ventre proeminente e murcho lançado para adiante com soberba, avizinha‑se da janela e encosta o púbis ao vidro por um momento. Tudo isto é presenciado por mim do fundo da sala, com os olhos fixos na sua coluna magra e dourada. Depois, a mulher volta a descer cuidadosamente o vestido e diz: “Está feito. O seu amigo desta vez parece ter vencido a timidez. Fez‑me sinal de que ia subir.”

    Perante tais palavras, foi como se na minha cabeça se desse uma explosão silenciosa. Volto a ver‑me diante da vitrine; lembro‑me de ter surpreendido de passagem uma estranha troca de olhares entre a mulher e o meu perseguidor. E agora tinha vontade de gritar: Mas você conhece aquele homem; está combinada com ele; me atraiu a uma emboscada.”

    Infelizmente, nada disto consegue sair da minha boca. Gaguejo apenas: Tu… Tu… Tu…”, e aponto‑lhe o dedo. Sem modificar o seu ar cansado e decepcionado, ela concorda: “sim, eu, eu, eu… Mas agora está aqui o seu amigo; Ele está batendo à porta: fique aqui enquanto eu vou abrir.” Dizendo isto, empurra‑me para um divã e, em seguida, sai rapidamente. Logo a seguir, ouço girar a chave na fechadura.

    Então, aproximo‑me da janela e pergunto‑me se não será altura de saltar para a rua, ainda que com risco de morte. Mas pondero que aquilo que quero não é salvar‑me, mas explicar‑me, fazer‑me entender, comunicar. A luz branda e indireta do céu nublado me assombra, estou quieto, encantado, suspenso. Estou dentro da vida a tal ponto que, dentro em breve, talvez seja sequestrado e morto; e ao mesmo tempo fora dela, sou‑lhe totalmente estranho. Poderão eles compreender? Serei capaz de lhes explicar? Entretanto, nas minhas costas, a porta abre‑se.

    Edgar Allan Poe Metzengerstein

    Pestis eram vivus – moriens tua mors ero.

    Vivendo era teu açoite – morto, serei tua morte.

    Martinho Lutero

    O horror e a fatalidade têm tido livre curso em todos os tempos. Porque então datar esta estória que vou contar? Basta dizer que, no período de que falo, havia, no interior da Hungria, uma crença bem assentada, embora oculta, nas doutrinas da metempsicose. Das próprias doutrinas, isto é, de sua falsidade, ou de sua probabilidade, nada direi. Afirmo, porém, que muito de nossa incredulidade (como diz La Bruyère, explicando todas as nossas infelicidades) vient de ne pouvoir être seul. [“Provém de não podermos estar sozinhos.”] (1)

    Mas havia na superstição húngara alguns pontos que tendiam fortemente para o absurdo. Diferiam os húngaros, bastante essencialmente, de suas autoridades do Oriente. Por exemplo: a alma, dizem eles – cito as palavras dum sutil e inteligente parisiense – ne demeure qu’une seule fois dans un corps sensible: au reste un cheval, un chien, un homme même, n’est que la ressemblanc peu tangible de ces animaux. [só uma vez permanece num corpo sensível: quanto ao resto, um cavalo, um homem mesmo, não são senão a semelhança pouco tangível desses animais. (N. T.)]

    As famílias de Berlifitzing e Metzengerstein viviam há séculos em discórdia. Jamais houvera antes duas casas tão ilustres acirradas mutuamente por uma hostilidade tão mortal. Parece encontrar-se a origem desta inimizade nas palavras duma antiga profecia: “Um nome elevado sofrerá queda mortal quando, como o cavaleiro sobre seu cavalo, a mortalidade de Metzengerstein triunfar da imortalidade de Berlifitzing.”

    Decerto as próprias palavras tinham pouca ou nenhuma significação. Mas as causas mais triviais têm dado origem – e isso sem remontar a muito longe – a conseqüências igualmente cheias de acontecimentos. Além disso, as duas casas, aliás vizinhas, vinham de muito exercendo influência rival nos negócios de um governo movimentado. É coisa sabida que vizinhos próximos raramente são amigos e os habitantes do castelo de Berlifitzing podiam, de seus altos contrafortes, mergulhar a vista nas janelas do palácio de Metzengerstein. Afinal, essa exibição duma magnificência mais que feudal era pouco propícia a acalmar os sentimentos irritáveis Berlifitzings, menos antigos e menos ricos. Não há, pois, motivo de espanto para o fato de haverem as palavras daquela predição, por mais disparatadas que parecessem, conseguido criar e manter a discórdia entre duas famílias já predispostas a querelar, graças às instigações da inveja hereditária. A profecia parecia implicar – se é que implicava alguma coisa – um triunfo final da parte da casa mais poderosa já, e era sem dúvida relembrada, com a mais amarga animosidade, pela mais fraca e de menor influência.

    O Conde Guilherme de Berlifitzing, embora de elevada linhagem era, ao tempo desta estória, um velho enfermo e caduco, sem nada de notável a não ser uma antipatia pessoal desordenada e inveterada pela família de seu rival e uma paixão tão louca por cavalos e pela caça que nem a enfermidade corporal nem a idade avançada nem a incapacidade mental impediam sua participação diária nos perigos das caçadas.

    O Barão Frederico de Metzengerstein, por outro lado, ainda não atingira a maior idade. Seu pai, o Ministro G***, morrera moço. Sua mãe, Dona Maria, logo acompanhara o marido. Frederico estava, naquela época, com dezoito anos de idade. Numa cidade, dezoito anos não constituem um longo período; mas num lugar solitário, numa solidão tão magnificente como a daquela velha casa senhorial, o pêndulo vibra com significação mais profunda.

    Em virtude de certas circunstâncias características decorrentes da administração de seu pai, o jovem barão, por morte daquele, entrou imediatamente na posse de vastas propriedades. Raramente se vira antes, um nobre húngaro senhor de tamanhos bens. Seus castelos eram incontáveis. O principal, pelo esplendor e pela vastidão era o palácio de Metzengerstein. Os limites de seus domínios jamais foram claramente delineados, mas seu parque principal abrangia uma área de cinqüenta milhas.

    O acontecimento da entrada de posse de uma fortuna tão incomparável por um proprietário tão jovem e de caráter tão bem conhecido poucas conjeturas trouxe à tona referente ao curso provável de sua conduta. E de fato, no espaço de três dias, a conduta do herdeiro sobrepujou a do próprio Herodes e ultrapassou, de longe, as expectativas de seus admiradores mais entusiastas. Orgias vergonhosas, flagrantes perfídias, atrocidades inauditas deram logo a compreender a seus apavorados vassalos que nenhuma submissão servil de sua parte e nenhum escrúpulo de consciência da parte dele lhe poderia de ora em diante garantir a segurança contra as implacáveis garras daquele mesquinho Calígula. Na noite do quarto dia, pegaram fogo as estribarias do castelo de Berlifitzing e a opinião unânime da vizinhança acrescentou mais este crime à já horrenda lista dos delitos e atrocidades do barão.

    Mas, durante o tumulto ocasionado por este fato, o jovem senhor estava sentado – aparentemente mergulhado em funda meditação – num vasto e solitário aposento superior do palácio senhorial dos Metzengerstein. As ricas, embora desbotadas, colgaduras que balançavam lugubremente nas paredes representavam as figuras sombrias e majestosas de milhares de antepassados ilustres. Aqui, padres ricamente arminhados e dignitários pontificais, familiarmente sentados com o soberano, opunham os seu veto aos desejos de um rei temporal ou reprimiam com o fiat da supremacia papal o centro rebelde do Grande-Inimigo. Ali, os negros e altos vultos dos príncipes de Metzengerstein – os musculosos corcéis de guerra pisoteando os cadáveres dos inimigos tombados – abalavam os nervos mais firmes, com sua vigorosa expressão; e aqui, ainda, voluptuosos e brancos como cisnes, flutuavam os vultos das damas de outrora, nos volteios duma dança irreal, aos acentos duma melodia imaginária.

    Mas, enquanto o barão escutava ou fingia escutar a algazarra sempre crescente que se erguia das cavalariças de Berlifitzing – ou talvez meditasse em algum ato de audácia, mais novo e mais decidido -, seus olhos se voltaram involuntariamente para a figura dum enorme cavalo, dum colorido fora do comum, representado na tapeçaria como pertencente a um antepassado sarraceno da família de seu rival. O cavalo se mantinha, no primeiro plano do desenho, sem movimento, como uma estátua, enquanto que, mais para trás, seu cavaleiro derrotado perecia sob o punhal dum Metzengerstein.

    Abriu-se nos lábios de Frederico uma expressão diabólica, ao perceber a direção que seu olhar tinha tomado, sem que ele o houvesse notado. Contudo não desviou a vista. Pelo contrário podia de forma alguma explicar a acabrunhante ansiedade que parecia apoderar-se, como uma mortalha, de seus sentidos. Era com dificuldade que conciliava suas sensações imaginárias e incoerentes com a certeza de estar acordado. Quanto mais olhava, mais absorvente se tornava o feitiço, mais impossível lhe parecia poder a arrancar seu olhar do fascínio daquela tapeçaria. Mas a algazarra de fora se tornou de repente mais violenta e, com um esforço constrangedor, desviou sua atenção para o clarão de luz vermelha lançado em cheio sobre as janelas do aposento pelas cavalariças chamejantes.

    A ação, porém, foi apenas momentânea; seu olhar se voltou maquinalmente para a parede. Com extremo espanto e horror, verificou que a cabeça do gigantesco corcel havia, entrementes, mudado de posição. O pescoço do animal antes arqueado, como que de compaixão, sobre o corpo prostrado de seu dono, estende-se agora, plenamente, na direção do barão. Os olhos, antes invisíveis, tinham agora uma expressão enérgica e humana, e cintilavam com um vermelho ardente e extraordinário; e os beiços distendidos do cavalo, que parecia enraivecido, exibiam por completo seus dentes sepulcrais e repugnantes.

    Estupefato de terror, o jovem senhor dirigiu-se, cambaleante, para a janela. Ao escancará-la, um jato de luz vermelha, invadindo até o fundo do aposento, lançou a sombra dele em nítido recorte de encontro à tapeçaria tremulante. Ele estremeceu, ao perceber que a sombra – enquanto se detinha vacilante no umbral – tomava exata posição e preenchia, precisamente, o contorno do implacável e triunfante matador do sarraceno Berlifitzing.

    Para aliviar a depressão de seu espírito, o barão correu para o ar livre. No portão principal do palácio encontrou três eguariços. Com muita dificuldade, e com imenso perigo de suas vidas, continham eles os saltos convulsivos dum cavalo gigantesco e de cor avermelhada.

    – De quem é esse cavalo? Onde o encontraram? – perguntou o jovem, num tom lamentoso e rouco, ao verificar, instantaneamente, que o misterioso corcel do quarto tapeçado era a reprodução do furioso animal que tinha diante dos olhos.

    – Ele vos pertence, senhor – respondeu um dos eguariços – ou pelo menos não foi reclamado por nenhum outro proprietário. Nós o pegamos quando fugia, todo fumegante e escumando raiva, das cavalariças incendiadas do castelo de Berlifitzing. Supondo que pertencesse à manada de cavalos estrangeiros do velho conde, levamo-lo para trás, como se fosse um dos remanescentes da estribaria. Mas os empregados ali negam qualquer direito ao animal, o que é estranho, uma vez que ele traz marcas evidentes de ter escapado dificilmente dentre as chamas.

    – As letras “W. V. B.” estão também distintamente marcadas na sua testa – interrompeu um segundo eguariço. – Supunha, portanto que eram as iniciais de Wilhelm von Berlifitzing, mas todos no castelo negam peremptoriamente conhecer o cavalo.

    – É extremamente singular! – disse o jovem barão, com um ar pensativo e parecendo inconsciente do significado de suas palavras… – É, como dizem vocês, um cavalo notável, um cavalo prodigioso… embora, como vocês muito bem observaram, de caráter, arisco e intratável… Pois que me fique pertencendo – acrescentou ele depois duma pausa. – Talvez um cavaleiro como Frederico Metzenterstein possa domar até mesmo o diabo das cavalariças de Berlifitzing.

    – Estais enganado, senhor. O cavalo, como já dissemos, creio eu, não pertence às cavalariças do conde. Se tal se desse, conhecemos demasiado nosso dever para trazê-lo à presença duma nobre pessoa de vossa família.

    – É verdade! – observou o barão, secamente.

    Nesse momento, um jovem camareiro veio a correr, afogueado, do palácio. Sussurrou ao ouvido de seu senhor a estória do súbito desaparecimento de pequena parte da tapeçaria, num aposento que ele designou, entrando, ao mesmo tempo, em pormenores de caráter minucioso e circunstanciado. Mas como tudo isto foi transmitido em tom de voz bastante baixo, nada transpirou que satisfizesse a excitada curiosidade dos eguariços.

    O jovem Frederico, enquanto ouvia, mostrava-se agitado por emoções variadas. Em breve, porém, recuperou a compostura e uma expressão de resoluta maldade espalhou-se-lhe na fisionomia ao dar expressas ordens para que o aposento em questão fosse imediatamente fechado e a chave trazida às suas mãos.

    – Soubeste, senhor, da lamentável morte do velho caçador Berlifitzing? – perguntou um de seus vassalos ao barão, enquanto, após a partida do camareiro, o enorme corcel, que o gentil-homem adotara como seu, saltava e corveteava, com redobrada fúria, pela longa avenida que se estendia desde o palácio até as cavalariças de Metzengerstein.

    – Não! – disse o barão, voltando-se abruptamente para quem lhe falava – Morreu, disse você?

    – É a pura verdade, senhor, e suponho que para um nobre com o vosso nome não será uma notícia desagradável.

    Rápido sorriso abriu-se no rosto do barão.

    – Como morreu ele?

    – Nos seus esforços imprudentes para salvar a parte favorita de seus animais de caça, pereceu miseravelmente nas chamas.

    – De… ve… e… e… ras! exclamou o barão, como que impressionado, lenta e deliberadamente, pela verdade de alguma idéia excitante.

    – Deveras – repetiu o vassalo.

    – Horrível – disse o jovem, com calma, e voltou sossegamente ao palácio.

    Desde essa data, sensível alteração se operou na conduta exterior do jovem e dissoluto Barão Frederico de Metzengerstein. Na verdade, seu procedimento desapontava todas as expectativas e se mostrava pouco em acordo com as vistas de muita mamãe de filha casadoira, ao passo que seus hábitos e maneiras, ainda menos do que dantes, não ofereciam algo de congenital com os da aristocracia da vizinhança. Nunca era visto além dos limites de seu próprio domínio e, no vasto mundo social, andava absolutamente sem companheiros, a não ser, na verdade, aquele cavalo descomunal, impetuoso e fortemente colorido, que ele de contínuo cavalgava a partir dessa época, tivesse qualquer misterioso direito ao titulo de seu amigo.

    Numerosos convites, da parte dos vizinhos, chegaram, durante muito tempo: “Quererá o barão honrar nossas festas com sua presença?” “Quererá o barão se juntar a nós para caçar javali?” – “Metzengerstein não caça” ou “Metzengerstein não comparecerá” eram as respostas lacônicas e arrogantes.

    Estes repetidos insultos não podiam ser suportados por uma nobreza imperiosa. Tais convites tornaram-se menos cordiais, menos freqüentes, até que cessaram por completo. A viúva do Conde de Berlifitzing exprimiu mesmo, como se diz ter-se ouvido, a esperança de “que o barão estivesse em casa, quando não desejava estar em casa, desde que desdenhava a companhia de seus iguais e que andasse a cavalo, quando não queria andar a cavalo, uma vez que preferia a companhia de um cavalo”. Isto decerto era estúpida explosão da hereditária má-vontade e provava, tão-só, quanto se tornam nossas palavras singularmente absurdas quando desejamos dar-lhes forma enérgica fora do comum.

    As pessoas caridosas, no entanto, atribuíam a alteração de procedimento do jovem fidalgo à tristeza natural de um filho pela precoce perda de seus pais, esquecidas, porém, de sua conduta atroz e dissipada durante o curto período que se seguiu logo àquela perda. Alguns havia, de fato, que a atribuíam a uma idéia demasiado exagerada de sua própria importância e dignidade. Outros ainda (entre os quais pode ser mencionado o médico da família) não hesitavam em falar numa melancolia mórbida e num mal hereditário, enquanto tenebrosas insinuações de natureza mais equivocas corriam entre o povo.

    Na verdade, o apego depravado do barão à sua montaria recentemente adquirida – apego que parecia alcançar novas forças a cada novo exemplo das inclinações ferozes e demoníacas do animal – tornou-se, por fim, aos olhos de todos os homens de bom-senso, um fervor nojento e contra a natureza. No esplendor do meio-dia, a horas mortas da noite, doente ou com saúde, na calma ou na tempestade, o jovem Metzengerstein parecia parafusado à sela daquele cavalo colossal, cujas ousadias intratáveis tão bem se adequavam ao próprio espírito do dono.

    Havia, além disso, circunstâncias que, ligadas aos recentes acontecimentos, davam um caráter sobrenatural e monstruoso à mania do cavaleiro e às capacidades do corcel. O espaço que ele transpunha em um simples salto fora cuidadosamente medido e verificou-se que excedia, por uma diferença espantosa, as mais ousadas expectativas das mais imaginosas criaturas. Além disso, o barão não tinha um nome particular para o animal, embora todos os outros de suas cavalariças fossem diferençados por denominações características. Sua estrebaria também ficava a certa distância dos restantes, e, quanto ao trato e outros serviços necessários, ninguém a não ser o dono em pessoa, se havia aventurado a fazê-los ou mesmo a entrar no recinto da baia particular daquele cavalo.

    Observou-se também que, embora os três estribeiros que haviam capturado o corcel quando este fugia do incêndio em Berlifitzing houvesse conseguido deter-lhe a carreira por meio dum laço corrediço, nenhum dos três podia afirmar com certeza que tivesse, no correr daquela perigosa luta, ou em outro qualquer tempo depois, posto a mão sobre o corpo do animal. Provas de inteligência característica na conduta dum nobre cavalo árdego não bastariam, decerto para excitar uma atenção desarrazoada, mas havia certas circunstâncias que violentavam os espíritos mais cépticos e mais fleumáticos.

    E dizia-se que, por vezes, o animal obrigava a multidão curiosa que o cercava a recuar de horror diante da profunda e impressionante expressão de seu temperamento terrível e que, outras vezes o jovem Metzengerstein empalidecera e fugira diante da súbita e inquisitiva expressão de seu olhar quase humano.

    Entre toda a domesticidade do barão ninguém havia, porém, que duvidasse do ardor daquela extraordinária afeição que existia da parte do jovem fidalgo pelas ferozes qualidades de seu cavalo; ninguém, exceto um insignificante e disforme pajenzinho, cujos aleijões estavam sempre à mostra de todos e cujas opiniões não tinham a mínima importância possível. Ele (se é que suas idéias são dignas afinal de menção) tinha o desplante de afirmar que seu senhor jamais montava na sela sem um estremecimento inexplicável e quase imperceptível, e que ao voltar de cada um de seus demorados e habituais passeios uma expressão de triunfante malignidade retorcia todos os músculos de sua fisionomia.

    Numa noite tempestuosa, Metzengerstein, despertando dum sono pesado, desceu, como um maníaco, de seu quarto e, montando a cavalo, a toda a pressa lançou-se a galope para o labirinto da floresta. Uma ocorrência tão comum não atraiu particular atenção, mas seu regresso foi esperado com intensa ansiedade pelos seus criados quando, após algumas horas de ausência, as estupendas e magníficas seteiras do palácio de Metzengerstein se puseram a estalar e a tremer até às bases, sob a ação duma densa e lívida massa de fogo indomável.

    Como as chamas, quando foram vistas pela primeira vez já tivessem feito tão terríveis progressos que todos os esforços para salvar qualquer parte do edifício eram evidentemente inúteis, toda a vizinhança atônita permanecia ociosa e calada, senão apática. Mas outra coisa inesperada e terrível logo prendeu da turba e demonstrou quão muito mais intensa é a excitação provocada nos sentimentos duma multidão pelo espetáculo da agonia humana do que suscitada pelas mais aterradoras cenas da matéria inanimada.

    Ao longo da comprida avenida de anosos carvalhos que levava da floresta até a entrada principal do palácio de Metzengerstein um corcel, conduzindo um cavaleiro sem chapéu e em desordem era visto a pular com uma impetuosidade que ultrapassava a do próprio Demônio da Tempestade.

    Era evidente que o cavaleiro não conseguia mais dominar a carreira do animal. A angústia de sua fisionomia, os movimentos convulsivos de toda a sua pessoa mostravam o esforço sobre-humano no que fazia; mas som algum, a não ser um grito isolado, escapava de seus lábios lacerados, que ele mordia cada vez mais, no paroxismo do terror. Num instante, o tropel dos cascos ressoou forte e áspero acima do bramido das labaredas e dos assobios do vento, um instante ainda e, transpondo dum só salto o portão e o fosso, o corcel lançou-se pelas escadarias oscilantes do palácio e, como o cavaleiro, desapareceu no turbilhão caótico do fogo.

    A fúria da tempestade imediatamente amainou e uma calma de morte sombriamente se seguiu. Uma labareda pálida ainda envolveu o edifício como uma mortalha, e, elevando-se na atmosfera tranqüila, dardejava um clarão de luz sobrenatural, enquanto uma nuvem de fumaça se abatia pesadamente sobre as ameias com a forma bem nítida dum gigantesco cavalo.

    Edgar Allan Poe

    Notas:

    1. Mercier, em L’an deux mille quatre cents quarante (O Ano 2440), defende seriamente as doutrinas da metempsicose, e J. D’Israeli diz que “não há sistema tão simples e que menos repugne a inteligência“. O Coronel Ethan Alteo, o Green Mountain Boy (O Garoto da Montanha Verde), foi também, segundo dizem, um sério e importante metempsicosista.

    Marquês de Sade | Augustine de Villeblanche, ou O Estratagema do Amor

    De todos os desvios da natureza, o que mais causou reflexão, que pareceu mais estranho a esses pseudofilósofos que tudo querem analisar sem nunca compreender algo -, dizia a uma de suas melhores amigas, certo dia, a Srta. Villeblanche, da qual falaremos oportunamente daqui a pouco -, é esse gosto bizarro que mulheres de certa compleição, ou de certo temperamento, desenvolveram com respeito a pessoas do seu sexo. Embora bem anteriormente à imortal Safo, e depois dela, não tivesse existido uma única região do universo, sequer uma cidade, que não nos tivesse dado mulheres nascidas desse tipo de capricho, e de acordo com provas tão cabais, fosse mais razoável acusar a natureza de bizarria do que a essas mulheres de crime contra a natureza, jamais, entretanto, deixou-se de as censurar, e, sem a autoridade imperiosa que sempre teve o nosso sexo, quem sabe se algum Cujas, algum Bartole, algum Luís IX, teriam imaginado criar leis de fagots* , contra essas criaturas, do modo como ousaram promulgar contra os homens que, formando o mesmo gênero singular, e por tão boas razões, sem dúvida, imaginaram, entre eles, poder se bastar a si próprios, e pensaram que a mistura dos sexos, muito útil à propagação, podia muito bem não ter essa mesma importância para os prazeres.

    – Queira Deus que não tomemos nenhum partido sobre isso… Não é, minha cara? – continuava a bela Augustine de Villeblanche, lançando a essa amiga beijos que pareciam, entretanto, no mínimo, suspeitos, mas em vez de fagots, em vez de desprezo, em vez de sarcasmos – essas armas de todos e embotadas em nossos dias -, não seria infinitamente mais simples, num gesto totalmente indiferente à sociedade, tão ao agrado de Deus, e, talvez mais útil à natureza do que se imagina, que se permitisse a cada qual agir segundo a própria vontade … ? O que se pode temer dessa depravação? Aos olhos de todo ser verdadeiramente sábio, parecerá que ela é capaz de exercer influência sobre maiores depravações, mas nunca me convencerão de que ela pode acarretar depravações perigosas… Pelos céus! Receia-se que os caprichos dessas pessoas, de um ou de outro sexo, sejam a causa do fim do mundo; que ponham em risco a valiosa espécie humana, e que seu pretenso crime a aniquile, por não se entregarem à sua multiplicação? Refleti bem sobre isso, e vereis que todas essas perdas quiméricas são inteiramente indiferentes à natureza; que não apenas ela não as condena em absoluto, mas também prova a nós, de mil maneiras, que as quer e deseja; e, contrariassem-na essas perdas, ela haveria de as tolerar em mil casos; permitiria ela, fosse-lhe a progenitura tão essencial, que uma mulher a isso não pudesse servir senão durante um terço de sua vida, e que, ao sair-lhe das mãos metade dos seres que ela gera, estes tivessem inclinações contrárias a essa progênie, exigida, todavia, por ela? Sendo mais preciso: ela permite que as espécies se multipliquem, mas não exige isso de modo algum, e, bem segura de que haverá sempre mais indivíduos do que lhe é necessário, longe está de contrariar Os pendores de quantos não se entregam à reprodução, e que se recusam a conformar-se a isso. Ah! Deixemos que aja essa boa mãe; convençamo-nos de que imensos são os seus recursos, de que nada do que fazemos a ultraja e o crime que atentaria contra as suas leis jamais nos há de sujar as mãos.

    A Srta. Augustine de Villeblanche, de cuja parte da lógica acabamos de tomar conhecimento, tendo se tornado senhora de seus atos aos vinte anos de idade, podendo dispor de trinta mil libras de renda, decidira-se, por gosto, nunca se casar; de boa origem, sem ser ilustre, era ela filha de um homem que enriquecera nas índias, que a tivera como única filha, e morrera sem nunca a poder convencer de se casar. Não devemos dissimulá-lo; essa repugnância que Augustine manifestava pelo casamento em muito se devia a esse tipo de capricho do qual ela acabara de fazer apologia; seja por conselhos, por educação, seja por disposição de órgão ou pelo calor do seu sangue (nascera em Madras), seja por inspiração da natureza, enfim, seja por tudo o que se quiser, a Srta. Villeblanche detestava os homens, e de todo se entregava àquilo que ouvidos castos entenderão com o termo safismo; não encontrava volúpia senão nas pessoas de seu sexo, e só com as Graças se compensava do desprezo que votava ao Amor.

    Para os homens, Augustine era um verdadeiro desperdício; alta, podendo servir de modelo a um pintor, com cabelos castanhos os mais belos, nariz um pouco aquilino, dentes extraordinários, e olhos de uma expressão, de uma vivacidade! Pele tão fina, tão branca, o conjunto, numa palavra, evocando tão ardente lascívia… Que bem certo era que vê-la assim, perfeita para dar amor e tão determinada a não o receber de maneira alguma, poderia arrancar a muitos homens infinitas zombarias contra determinado gosto, por sinal, muito simples, mas privando, contudo, os altares de Pafo* de uma das criaturas do universo mais apropriadas a servi-los, – vê-la assim por força havia de animar os sectários dos templos de Vênus. A srta. Villeblanche ria prazerosamente dessas censuras todas, dessas maledicências, e por isso não se dava menos a seus caprichos.

    – A maior de todas as loucuras – dizia ela – é enrubescer por causa de nossas inclinações naturais; e zombar de qualquer indivíduo que possua gostos singulares é absolutamente tão desumano quanto escarnecer de um homem ou de uma mulher saída zarolha ou coxa do seio de sua mãe; mas convencer os tolos sobre esses princípios racionais é tentar impedir o movimento dos astros. Para o orgulho, há uma espécie de prazer em zombar dos defeitos que se não tem, e essa satisfação é tão doce ao homem e particularmente aos néscios, que é muito raro vê-los renunciar a tal comportamento, este, por sinal, fomenta a malvadez, as frívolas palavras de espírito, os calembures vulgares, e, para a sociedade, isto é, para um grupo de seres que o tédio reúne e a estupidez modifica, é tão doce falar duas ou três horas sem nada dizer! tão delicioso brilhar às custas dos outros, e proclamar, estigmatizando um vício, que se está bem longe de o possuir… é uma espécie de elogio que se faz tacitamente a si mesmo; por esse preço é lícito inclusive associar-se aos outros, tracejar maquinações secretas a fim de pisar no indivíduo cujo grande erro é não pensar como a maioria dos mortais; e a pessoa volta para casa toda entufada devido à espirituosidade que não lhe faltou, embora com tal conduta só se tenha demonstrado, essencialmente, pedantismo e estupidez.

    Assim pensava a srta. Villeblanche; decidida de maneira muito segura a nunca se reprimir, desdenhando as maledicências e bastante rica para manter-se a si própria acima de sua reputação, visava epicurianamente a uma vida voluptuosa, e de maneira nenhuma a beatices celestiais em que acreditava muito pouco, para não mencionar a idéia de uma imortalidade, por demais quimérica aos seus sentidos; no centro de um pequeno círculo de mulheres que pensavam como ela, a cara Augustine entregava-se inocentemente a todos os prazeres que a deleitavam. Tivera muitos pretendentes, mas todos haviam sido tão maltratados, que quando já se estava prestes a se renunciar a tal conquista, um jovem de nome Franville, de semelhante condição social, ao menos tão rico quanto ela, tendo se apaixonado como louco, não apenas não se revoltou de maneira nenhuma com sua firmeza, como também decidiu com muita seriedade não abandonar o posto enquanto ela não fosse conquistada; comunicou o projeto a seus amigos, que dele zombaram; asseverou-lhes que obteria êxito; eles o desafiaram a obtê-lo, e ele se lançou à empresa. Franville, com dois anos menos que a srta. Villeblanche, quase não tinha barba, mas boa estatura, e feições as mais delicadas, e os cabelos mais bonitos do mundo; quando o trajavam de mulher, ficava tão bem que sempre enganava os dois sexos, e recebia amiúde, fugindo ao assédio de uns, dos que demonstravam segurança em sua ação, uma grande quantidade de declarações tão objetivas que no mesmo dia seria capaz de se tornar o Antínoo de algum Adriano ou o Adônis de alguma Psique. Foi com esse disfarce que Franville imaginou seduzir srta. Villeblanche; veremos como procedeu.

    * Antiga cidade da ilha de Chipre, célebre por seu templo de Afrodite (N.dos T.)

    Um dos maiores prazeres de Augustine era, durante o carnaval, vestir-se de homem, e participar de todos os bailes com esse disfarce, tão análogo a suas inclinações; Franville, que lhe mandava vigiar os passos, e que até aquele momento tivera o cuidado de revelar-se-lhe bem pouco, soube, certa feita, que essa a quem adorava na mesma noite iria a um baile organizado por associados do Ópera, onde todos os mascarados poderiam entrar, e que, segundo costume dessa moça encantadora, ela se apresentaria como capitã dos dragões. Ele se disfarça de mulher, enfeita-se, veste-se com toda elegância e propriedade, carrega a maquiagem, prescindindo da máscara, e, acompanhado por uma de suas irmãs, muito menos bonita do que ele próprio, apresenta-se assim no baile, para onde a amável Augustine se dirigia em busca de aventura.

    Menos de três voltas pelo salão bastaram para que Franville fosse distinguido pelos olhos experientes de Augustine.

    – Quem é aquela bela moça? – diz a srta. Villeblanche a uma amiga que a acompanhava -… Creio nunca tê-la visto; como é possível que tão deliciosa criatura tenha, pois, nos escapado?

    Mal haviam sido pronunciadas essas palavras, e Augustine faz quanto pode para encetar conversa com a falsa senhorita de Franville, que a princípio foge, inquieta-se, esquiva-se, escapa, e tudo isso a fim de fazer com que a desejem com mais ardor; por fim, ela o aborda, frases banais travam inicialmente a conversa a qual, a pouco e pouco, torna-se mais interessante.

    – Está fazendo um calor insuportável no salão diz a srta. Villeblanche -, deixemos nossas companhias juntas, e tomemos um pouco de ar nesses aposentos onde nos divertimos e refrescamos.

    – Ah, senhor – diz Franville à srta. Villeblanche a qual ainda finge confundir com um homem… – na verdade, não ouso fazer isso: estou aqui apenas com minha irmã, mas sei que minha mãe deverá vir com o esposo que me foi destinado, e se ambos me vissem convosco, seria uma grande confusão…

    – Bem, bem, é preciso pôr-se ao abrigo de todo esse medo infantil… Qual a vossa idade, meu anjo?

    – Dezoito anos, senhor.

    – Ah! Digo-vos que aos dezoito já se deve ter adquirido o direito de fazer tudo o que se quiser… Vamos, vamos, acompanhai-me, e não tenhais nenhum medo… – E Franville se deixa levar.

    – É verdade, encantadora criatura – continua Augustine, conduzindo a pessoa a quem ainda toma aposentos contíguos ao salão do baile… – é verdade, realmente vós vos unireis em matrimônio… Como lamento por vós! e quem é ele, essa pessoa a quem vos destinam? Um maçador, decerto… Ah, como será feliz, esse homem, e como eu gostaria de estar no lugar dele! Consentiríeis desposar-me a mim, por exemplo? Dizei-me francamente, jovem celestial.

    – Ai de mim! Senhor, acaso não sabeis que, quando se é jovem, segue-se os impulsos do coração?

    – Pois bem; recusai-o, esse homem vil! tornar-nos-emos ambos mais íntimos, e, se gostarmos… Por que não nos unir-nos? Não preciso, graças a Deus, de permissão nenhuma; embora tenha só vinte anos, sou senhor de minha vida, e se pudésseis persuadir vossos pais em meu favor, antes de oito dias talvez estivésseis, vós e eu, ligados pelos laços eternos.

    Tagarelando, saíram do baile, e a astuta Augustine, que até lá não conduzia sua presa para fugir ao perfeito amor, teve o cuidado de a conduzir a um aposento muito isolado, do qual, por meio de acordos acertados com os organizadores do baile, ela sempre tinha o cuidado de se fazer senhora.

    – Oh Deus! – diz Franville, tão logo vê Augustine fechar a porta desse quarto e envolvê-lo nos seus braços -, oh pelos céus! Que desejais fazer?… O quê? Convosco, frente a frente, senhor, e num lugar tão retirado… Deixai-me, deixai-me, rogo-vos! Ou chamo agora mesmo por socorro.

    – Impedir-te-ei de fazê-lo, anjo divino – diz Augustine, apertando a bela boca contra os lábios de Franville – grita agora, grita se podes, e o puro sopro de teu hálito de rosas abrasará ainda mais cedo o meu coração.

    Franville defendia-se com bastante tibieza: é difícil encolerizar-se muito quando se recebe de maneira tão terna o primeiro beijo de quem se adora. Augustine, encorajada, investia com mais força, nisso pondo essa veemência que só com efeito conhecem as mulheres deliciosas, arrebatadas por essa fantasia. Em breve as mãos se desgarram; Franville faz o papel da mulher que cede, igualmente deixa que suas mãos explorem o corpo. Todas as vestes são retiradas, e os dedos se dirigem quase ao mesmo tempo para onde cada um crê encontrar o que lhe convém… Então, Franville muda imediatamente de papel:

    – Oh! Pelos céus – exclama ele -, o quê? Sois uma mulher…

    – Horrível criatura – diz Augustine, pondo a mão em partes do corpo que não dão margem à dúvida -, tanto trabalho para encontrar um mísero homem… é preciso ter azar demais.

    – Na verdade, não mais do que eu – diz FranviIle, recompondo-se, e dando mostras do mais profundo desprezo -, uso esse disfarce para seduzir os homens; eu os amo, corro atrás deles, e só encontro uma p…

    – Oh, p…. Não – diz Augustine, com rancor nunca o fui em minha vida; não é por se detestar os homens que se pode ser tratada dessa maneira…

    – Como, sois mulher, e detestais os homens?

    – Sim, e isso pela mesma razão de serdes homem e detestardes mulheres.

    – Um encontro singular – eis tudo o que se pode dizer.

    – E para mim muito triste – acrescenta Augustine, revelando todos os sintomas de descontentamento mais acentuado.

    – Em verdade, senhorita, tal encontro é ainda mais fastidioso para mim – diz asperamente Franville -, desonrado por três semanas: sabeis que em nossa ordem fazemos voto de nunca tocar em mulheres?

    – Parece-me que, sem se desonrar, é possível tocar numa como eu.

    – Com efeito, minha bela – continua Franville não vejo grande motivo para a exceção, e não compreendo que um vício para vós valha um mérito adicional.

    – Um vício? Mas caberia a vós censurar-me pelos meus, quando partilhais da mesma infâmia?

    – Escutai – diz Franville -, não continuemos discutindo; o melhor é nos separarmos e nunca mais nos vermos.

    E, dizendo isso, Franville prepara-se para abrir a porta.

    – Um momento, um momento – diz Augustine impedindo-o de fazer isso -, ides espalhar nossa aventura pelo mundo todo, aposto.

    – Talvez venha a me divertir com isso.

    – Que me importa, de resto, estou, graças a Deus, acima da maledicência; retirai-vos, e dizei tudo o que vos aprouver… – e impedindo-o de sair mais uma vez – sabei – diz ela sorrindo – que essa história é extraordinária… Nós dois nos enganávamos.

    – Ah! o erro é muito mais intolerável – diz Franville – a pessoas de meu gosto, do que a pessoas do vosso… E esse vazio nos repugna…

    – Por minha fé, meu caro! Sabei que o que nos ofereceis desagrada ao menos tanto quanto a vós! Ora, o desencanto é igual em cada um, mas a aventura é muito engraçada; não deixemos de concordar com isso. Voltareis ao baile?

    – Não sei.

    – No que me diz respeito, não volto mais lá – diz Augustine -… Vós me fizestes experimentar coisas… Contrariedade… Vou me deitar.

    – Perfeito.

    – Mas vejamos se sereis bastante cortês para dardes o braço até minha casa; minha residência fica a dois passos daqui; não estou com minha carruagem; ireis me deixar aqui…

    – Não, eu vos acompanharei de bom grado – diz Franville -, nossas inclinações não nos impedem de sermos polidos… Quereis minha mão?… Ei-la.

    – Só me sirvo dela porque não encontro coisa melhor, pelo menos.

    – Ficai tranqüila; para mim, só vô-la ofereço por honestidade.

    Chegam à porta da casa de Augustine, e Franville apresta-se a se despedir.

    – Em verdade, sois delicioso – diz a srta. Villeblanche -, o quê? Deixar-me-eis na rua?

    – Com mil desculpas – diz Franville -… Eu não pretendia…

    – Ah, como são rudes esses homens que não amam as mulheres!

    – É que – diz Franville, dando, todavia, o braço à srta. Villeblanche até sua residência -, vede, senhorita, eu gostaria de retornar bem rápido ao baile e nele tentar reparar minha estupidez.

    – Vossa estupidez? Estais, pois, bem irritado por ter-me encontrado?

    – Eu não disse isso; mas não é verdade que podíamos os dois ter um encontro infinitamente melhor?

    – Sim, tendes razão – diz Augustine, entrando enfim eu seu apartamento – tendes razão, senhor, eu, sobretudo… pois temo que esse funesto encontro não me custe a felicidade de minha vida.

    – De que modo? Não estais, Portanto, bem segura de vossos sentimentos?

    – Ainda ontem estava.

    – Ah! Não sustentais vossas tácitas afirmações.

    – Não sustento coisa alguma; vós me impacientais.

    – Pois bem, eu me retiro, senhorita, me retiro… Deus me livre de vos incomodar por mais tempo.

    – Não! Permanecer, ordeno-vos! Seríeis capaz de vos esforçar a fim de obedecer a uma mulher pelo menos uma vez em vossa vida?

    – Nada há que eu não faça – diz Franville, sentando-se por complacência – já vos disse; sou honesto.

    – Sabeis que, na vossa, é muito decente ter gostos tão singulares?

    – Oh! isso é muito diferente! no nosso caso, trata-se de discrição, pudor… até mesmo orgulho, se quiserdes; medo de entregar-se a um sexo que nos seduz somente para subjugar-nos… Entretanto, os sentidos não mentem, e encontramos alívio entre nós; conseguimos ocultar-nos muito bem, e disso resulta um verniz de sabedoria que freqüentes vezes engana; assim, a natureza se satisfaz, a decência é observada e os costumes não são ultrajados.

    – Eis o que se costuma chamar um bom e belo sofisma; procedendo dessa maneira, justificar-se-ia tudo; e o que dizeis em tudo isso que também não possamos alegar em favor nosso?

    – De maneira alguma! Com preconceitos muito diferentes, não deveis ter medo que tais; vosso triunfo está em nossa derrota… Mais multiplicais vossas conquistas, mais acrescentais à vossa glória, e não vos podeis abster dos sentimentos que em vós despertamos, senão pelo vício ou pela depravação.

    – Na verdade, creio que me hás de converter.

    – Eu o desejaria.

    – O que ganharíeis com isso, enquanto vós mesma continuaríeis em erro?

    – É uma necessidade imposta pelo meu sexo, e, tal como as mulheres, fico bem contente de trabalhar para elas.

    – Se o milagre se realizasse, seus efeitos não seriam tão gerais quanto imaginais; eu só desejaria me converter para uma única mulher para pelo menos… Tentar.

    – O que dizeis é justo.

    – O que é bem certo é que há certo preconceito, acredito, a tomar partido antes de ter experimentado tudo.

    – Como? Nunca tivestes uma mulher?

    – Nunca; e vós… Possuiríeis por acaso primícias tão seguras?

    – Oh, primícias, não… as mulheres que nós vemos são tão hábeis e tão ciumentas que nada nos permitem… Mas nunca conheci um homem em minha vida.

    – E fizestes um juramento?

    – Sim, jamais quero ver um, ou, pelo menos tão singular quanto eu.

    – Lamento não ter feito o mesmo voto.

    – Não creio que seja possível ser mais impertinente…

    E dizendo essas palavras, a srta. Villeblanche levanta-se e diz a Franville que ele pode se retirar. Nosso jovem amante, sempre frívolo, faz uma profunda reverência e se prepara para sair.

    – Retornais ao baile – diz-lhe secamente a srta. Villeblanche, observando-o com um despeito aliado ao mais ardente amor.

    – Mas sim, eu vos disse; é o que me parece.

    – Pelo visto, não sois capaz do sacrifício que vos faço.

    – Que sacrifício me haveis feito?

    – Só voltei para casa a fim de nada mais ver depois de ter tido a infelicidade de vos conhecer.

    – Infelicidade?

    – Sois vós que me forçais a empregar essa expressão; só de vós dependeria que eu lançasse mão de uma bem diferente .

    – E como haveríeis de conciliar isso com vossos gostos?

    – O que não se abandona quando se ama!

    – É verdade; mas ser-vos-ia impossível amar-me.

    – Concordo com isso; se conservásseis hábitos tão detestáveis quanto esses que descobri em vós.

    – E se eu renunciasse a eles?

    – No mesmo instante, havia de imolar os meus nos altares do amor… Ah! Criatura pérfida!, Que essa confissão custe a minha glória, a qual acabas de arrancar-me – diz Augustine em lágrimas -, deixando-se cair sobre uma poltrona.

    – Da mais bonita boca do universo obtive a confissão mais lisonjeira que me seria dado ouvir – diz Franville, lançando-se aos joelhos de Augustine -… Ah! Caro objeto de meu mais terno amor! Reconhecer meu ardil e condescender em não puni-lo de modo algum; é aos vossos pés que vos imploro graça; permanecerei aqui até obter meu perdão. Vedes próximo a vós, senhorita, o amante mais constante e mais apaixonado; imaginei necessário esse estratagema para sobrepujar um coração cujos obstáculos eu conhecia. Obtive êxito, bela Augustine? Recusareis, ao amor sem máculas, o que haveis condescendido em dizer ao amante culpado… Culpado, eu… Culpado do que haveis acreditado… Ah! Podíeis supor que uma paixão impura pudesse existir na alma daquele que nunca ardeu de paixão senão por vós.

    – Traidor, tu me enganastes… Mas te perdôo… Contudo, nada terás que me sacrificar, pérfido; e meu orgulho sentir-se-á até mesmo lisonjeado por isso; pois bem, não importa; quanto a mim, tudo te sacrifico… Está certo, renuncio com alegria para te satisfazer as torpezas a que a vaidade nos arrasta quase tão amiúde quanto nossos gostos. Sei que a natureza acaba por triunfar, eu sufocava por desvios que agora abomino de todo meu coração; não resistimos de modo nenhum a seu império; ela não nos criou senão para vós; não vos formou senão para nós; sigamos as leis dela, é pelo intermédio do próprio amor que ela hoje mos inspira; elas se tornarão para mim mais sagradas. Eis minha mão, senhor; eu vos tenho por homem de palavra, e feito para aspirar a mim. Se eu por um instante fiz por merecer perder vossa estima, por força de cuidados e ternura talvez venha a recuperar minhas faltas, e forçar-vos-ei a reconhecer que aquelas da imaginação nem sempre degradam uma alma boa.

    Franville, no cúmulo de seus votos, inundando de lágrimas de sua alegria as belas mãos que as mantém coladas à sua boca, levanta-se e precipitando-se nos braços que se lhe abrem:

    – Oh, dia mais feliz de minha vida – ele exclama existe algo de comparável a meu triunfo? Trago de volta ao seio das virtudes o coração em que vou reinar para sempre.

    Franville beija mil vezes o divino objeto de seu amor e dele se separa; comunica, no dia seguinte, sua felicidade a todos os seus amigos; a srta. Villeblanche era muito bom partido para que seus pais lho recusassem; ele a desposa na mesma semana. A ternura, a confiança, a discrição mais estrita, a modéstia mais severa, coroaram seu casamento, e se tornando o mais feliz dos homens, foi bastante hábil para fazer da mais libertina das moças a mais sábia e a mais virtuosa das mulheres.

    H.P. Lovecraft | A Tumba


    Ao relatar as circunstâncias que conduziram ao meu confinamento neste asilo de loucos, tenho consciência de que minha posição atual criará dúvidas naturais acerca da autenticidade de minha narrativa. É grande infortúnio o fato de que o grosso da humanidade seja limitado demais, em sua visão mental, para pesar com paciência e inteligência esses fenômenos isolados, vistos e sentidos apenas por uma minoria psicologicamente sensível, os quais jazem fora de toda experiência comum. Homens de intelecto mais amplo sabem que não existe nenhuma distinção precisa entre o real e o irreal; que todas as coisas aparecem como tais apenas em virtude dos delicados meios psíquicos e mentais de cada indivíduo, por meio dos quais nos tornamos conscientes delas; mas o materialismo prosaico da maioria reputa como loucura os lances de visão superior que perfuram o véu comum do empirismo óbvio.

    Meu nome é Jervas Dudley, e desde a mais tenra infância tenho sido um sonhador e um visionário. Rico para além das necessidades de uma vida comercial, e de um temperamento inapto para os estudos formais e o recreio social daqueles com quem me relaciono, tenho lidado desde sempre em reinos que não pertencem ao mundo visível, passando minha juventude e minha adolescência debruçado sobre livros antigos e pouco conhecidos e a percorrer os campos e bosques das cercanias de meu lar ancestral. Não creio que o que li nesses livros ou vi nesses campos e bosques fosse exatamente o que os outros rapazes leram e viram ali, mas sobre isso preciso falar pouco, pois que discorrer mais detalhadamente apenas confirmaria essas calúnias cruéis acerca de meu intelecto que às vezes ouço sussurrarem os atendentes furtivos que me rodeiam. Basta-me relatar os eventos, sem analisar as causas.

    Disse que vivi afastado do mundo visível, mas não disse que vivi sozinho. Isso nenhuma criatura humana poderia fazer, desde que, à falta da camaradagem dos vivos, inevitavelmente se entra na companhia de coisas que não são – ou não mais estão – vivas. Próximo à minha casa existe um vale arborizado bastante singular, em cujas profundezas crepusculares eu passava grande parte de meu tempo a ler, a pensar e a sonhar. Pelas suas encostas cobertas de musgo ensaiei meus primeiros passos de infância, e em volta de seus carvalhos grotescamente retorcidos se teceram minhas primeiras fantasias de juventude. Conheci as dríades dessas árvores e não raro assisti às suas danças selvagens sob os raios vacilantes de uma lua pálida, mas acerca dessas coisas não devo falar agora. Falarei apenas da tumba solitária em meio ao matagal mais escuro do declive – a tumba abandonada dos Hydes, uma velha e nobre família cujo último descendente direto fora depositado em seus negros recessos muitas décadas antes de eu nascer.

    O pórtico a que me refiro é feito de granito ancestral, lavado e descolorido pelas névoas e pela umidade de muitas gerações. Escavada na encosta, apenas a entrada da construção é visível. A porta – uma pesada e proibitiva laje de pedra – pende de dobradiças de metal enferrujado e, ligeiramente aberta, jaz lacrada por pesadas correntes de ferro e cadeados, de acordo com um repulsivo costume de meio século atrás. A residência do clã cujos descendentes estão enterrados aqui coroou certa vez o declive no qual está a tumba, mas há muito tombou vitimada pelas chamas que desceram do céu na forma de um relâmpago. Daquela tempestade que à meia-noite destruiu essa lúgubre mansão os habitantes mais velhos da região às vezes falam entre sussurros e inquietações, aludindo ao que chamam de “ira divina” de um modo que nos últimos anos fez crescer vagamente o fascínio que eu sentia pelo sepulcro encravado na mata. Um homem apenas pereceu no fogo. Quando o último dos Hydes foi enterrado neste local de sombra e quietude, a triste urna de cinzas veio de uma terra distante, para a qual a família se mudou quando a mansão pegou fogo. Não resta ninguém para colocar flores diante do portal de granito, e muito poucos se dão ao trabalho de enfrentar as sombras depressivas que parecem guardar estranhamente as pedras lavadas pelas chuvas.

    Jamais esquecerei aquele entardecer em que, pela primeira vez, me deparei com a semioculta casa da morte. Foi em pleno verão, quando a alquimia da natureza transmuda a paisagem silvestre numa única e quase homogênea massa de verde, quando os sentidos estão quase intoxicados com os mares afluentes de verdura úmida e os odores sutilmente indefiníveis do solo e da vegetação. Numa tal ambientação a mente perde suas perspectivas, o tempo e o espaço tornam-se triviais e irreais, e ecos de um esquecido passado pré-histórico batem insistentemente contra a consciência enlevada.

    Durante o dia todo eu tinha estado a perambular através dos bosques místicos do vale, a conceber pensamentos que não há que discutir e a conversar com coisas que não há que nomear. Com apenas dez anos, eu tinha visto e ouvido muitas maravilhas que a turba desconhecia e já era espantosamente maduro em certos aspectos. Quando, depois de abrir caminho entre duas touceiras de arbustos, subitamente deparei com a entrada da cripta, não tinha o menor conhecimento acerca do que encontrara. Os blocos negros de granito, a porta curiosamente semicerrada e os entalhes funerais sobre o arco não despertaram em mim quaisquer associações de caráter fúnebre ou terrível. Sobre sepulturas e tumbas eu sabia e devaneara bastante, mas fora poupado, devido ao meu temperamento peculiar, de todo contato com adros e cemitérios. A estranha casa de pedra escondida entre o mato na encosta constituía para mim apenas uma fonte de interesse e especulação, e seu interior frio e úmido, para dentro do qual eu espiava através da excruciante abertura, não me sugeria nada de morte ou decadência. Mas naquele instante de curiosidade nasceu o desejo loucamente irracional que me trouxe até este inferno de confinamento. Espicaçado por uma voz que deve ter vindo da alma medonha da floresta, tomei a decisão de penetrar na escuridão que me convocava, a despeito das pesadas correntes que impediam minha passagem. Na luz evanescente do dia chacoalhei insistentemente os obstáculos enferrujados, na esperança de abrir a porta de pedra, e até mesmo experimentei espremer meu corpo magro através do pouco espaço disponível, mas essas tentativas não surtiram efeito. Curioso no início, tornei-me frenético e, quando ao anoitecer retornei a casa, jurara aos cem deuses da mata que a qualquer custo um dia haveria de forçar minha entrada nas profundezas escuras e gélidas que pareciam me chamar. O médico de barba grisalha que todos os dias vem até meus aposentos certa vez disse a um visitante que essa decisão marcou o começo de uma lamentável monomania; mas deixarei o julgamento final a cargo de meus leitores, depois que souberem de tudo.

    Os meses subseqüentes à minha descoberta foram gastos em tentativas fúteis de forçar o complicado cadeado da cripta semicerrada, bem como em perquirições cuidadosas e vigilantes acerca da natureza e da história da construção. Com os ouvidos tradicionalmente receptivos de um menino, aprendi muito, embora uma discrição habitual não me permitisse contar a ninguém sobre o meu conhecimento ou minha resolução. Será talvez importante mencionar que não fiquei nem um pouco surpreso ou aterrorizado com a natureza do pórtico. Minhas idéias bastante originais acerca da vida e da morte tinham me levado a associar, de maneira vaga, a argila fria com o corpo que respira, e senti que a grande e sinistra família da mansão incendiada estava de algum modo dentro do espaço de pedra que eu procurava explorar. Lendas murmuradas acerca de ritos exóticos e festins pagãos de épocas passadas, ocorridos dentro do vestíbulo ancestral, despertaram em mim um novo e irresistível interesse pela tumba, em frente a cuja porta eu me sentaria durante horas diariamen
    te. Um dia acendi uma vela diante da entrada obstruída, mas nada pude ver a não ser um lance descendente de degraus de pedra úmida. O odor do lugar me repelia e ao mesmo tempo me enfeitiçava. Sentia como se já o tivesse conhecido num passado remoto, anterior a toda lembrança, anterior mesmo à habitação deste corpo que agora possuo.

    No ano seguinte àquele em que vi a tumba pela primeira vez, deparei-me, no sótão cheio de livros de minha casa, com uma tradução corroída das Vidas de Plutarco. Ao ler a vida de Teseu, fiquei por demais impressionado com a passagem em que se fala da enorme pedra sob a qual o menino herói haveria de encontrar as pistas sobre seu destino assim que se tornasse adulto o suficiente para erguer o grande peso. A lenda teve o efeito de aplacar minha aguda impaciência em atravessar o portal, fazendo-me sentir que a hora ainda não chegara. Mais tarde – eu disse a mim mesmo – crescerei e adquirirei força e habilidade que me permitirão destrancar facilmente a porta que os grilhões encerram, mas até lá seria melhor me conformar com o que me parecia ser a vontade do destino.

    Com efeito, minhas vigílias diante do portal úmido tornaram-se menos persistentes, e grande parte do meu tempo era despendida em outras atividades igualmente estranhas. Às vezes eu me levantava em silêncio durante a noite, saindo às escondidas para andar por esses cemitérios ou locais de sepultamentos dos quais meus pais me mantiveram afastado. O que eu fazia lá não posso dizer, pois agora não estou seguro de algumas coisas, mas sei que no dia seguinte a essas rondas noturnas eu costumava pasmar os que me cercavam exibindo conhecimento de assuntos quase esquecidos durante muitas gerações. Foi depois de uma noite dessas que surpreendi a comunidade com uma idéia inusitada acerca do enterro do rico e celebrado Squire Brewster, personagem da história local que fora sepultado em 1711 e cuja lousa, exibindo um crânio gravado e ossos cruzados, ia lentamente se transformando em pó. Num lance de fantasia infantil, aventei não somente que o coveiro, Goodman Simpson, teria roubado os sapatos de fivelas de prata, as calças de seda e as roupas de baixo de cetim do falecido antes do enterro, mas que o próprio Squire, não totalmente inanimado, teria se virado duas vezes em seu caixão coberto de terra no dia seguinte ao do sepultamento.

    Mas a idéia de entrar na tumba nunca me saiu da cabeça, sendo mesmo estimulada pela inesperada descoberta genealógica de que minha ascendência materna mantinha um ligeiro vínculo com a supostamente extinta família dos Hydes. Último de minha raça paterna, eu era igualmente o último dessa linhagem mais antiga e mais misteriosa. Comecei a sentir que a tumba era minha e a esperar ansiosamente pelo momento em que poderia atravessar a porta de pedra e descer na escuridão por aqueles degraus de pedra lodosa. Adquiri o hábito de ouvir com atenção através da porta semiaberta, preferindo as horas da quietude noturna para essa estranha vigília. Quando adquiri mais idade, abri uma pequena clareira no matagal que recobria a face do declive, permitindo que a vegetação circundante cercasse e envolvesse a abertura como uma espécie de cerca viva selvagem. Essa clareira se tornou meu templo, a porta fechada meu santuário, e era aqui que eu me deitava sobre o solo musgoso a pensar estranhos pensamentos e a sonhar sonhos estranhos.

    A noite da primeira revelação estava bastante abafada. Devo ter adormecido de cansaço, pois foi com uma clara sensação de despertar que ouvi as vozes. Hesito em falar desses acentos e timbres, não falarei de sua qualidade, mas posso dizer que apresentavam espantosas diferenças de vocabulário, pronúncia e modos de enunciação. Cada matiz dialetal da Nova Inglaterra, desde as ásperas sílabas dos colonos puritanos até a retórica precisa de cinqüenta anos atrás, parecia representado naquele colóquio sombrio, conquanto somente mais tarde eu notasse esse fato. Naquela hora, decerto, minha atenção foi desviada desse aspecto por um outro fenômeno – um fenômeno tão fugaz que eu não poderia jurar acerca de sua realidade. Mal me dei conta de ter despertado, uma luz foi imediatamente apagada dentro do sepulcro escuro. Não creio que fiquei perplexo ou apavorado, mas sei que fui transformado profunda e permanentemente naquela noite. Logo que voltei a casa, dirigi-me imediatamente a uma arca carcomida no sótão, onde encontrei a chave que no dia seguinte removeu com facilidade o obstáculo contra o qual me bati em vão durante tanto tempo.

    Foi sob o brilho de um suave entardecer que entrei pela primeira vez na cripta da encosta abandonada. Como se enfeitiçado, meu coração vibrava de um contentamento que não sei descrever. Assim que fechei a porta atrás de mim e desci os degraus encharcados à luz de uma vela, era como se eu já soubesse o caminho, e embora a vela crepitasse na atmosfera sufocante do lugar, eu me sentia singularmente em casa naquele ar mofado e sepulcral. Olhando ao meu redor, avistei muitas lajes de mármore sustentando esquifes ou os restos de esquifes. Alguns estavam lacrados e intactos, mas outros se tinham quase desfeito, deixando apenas as alças de prata e as placas isoladas em meio a alguns montículos singulares de pó. Sobre uma das placas li o nome de Sir Geoffrey Hyde, o qual viera de Sussex em 1640 e morrera aqui uns poucos anos mais tarde. Numa alcova conspícua havia um caixão desocupado e bastante bem preservado, adornado apenas com um nome que me fez sorrir e estremecer. Um impulso inusitado me levou a subir na laje larga, a apagar minha vela e a me deitar dentro da caixa vazia.

    À luz cinzenta da aurora cambaleei para fora da cripta e tranquei a corrente da porta atrás de mim. Já não era mais um jovem, embora apenas vinte e um invernos houvessem esfriado minha estrutura corpórea. Aldeões madrugadores que observaram minha caminhada até casa olhavam-me de maneira estranha e espantavam-se com os sinais de obscena euforia que descobriam num homem cuja vida era conhecidamente solitária e austera. Não compareci perante meus pais sem antes passar por um sono longo e restaurador.

    Desde então passei a ir à tumba a cada noite, vendo, ouvindo e fazendo coisas que não devo jamais recordar. Meu modo de falar, sempre suscetível às influências do ambiente, foi a primeira coisa a sucumbir à mudança, e o arcaísmo de dicção que subitamente adquiri foi logo notado. Mais tarde, um atrevimento e uma audácia inesperados apareceram em meu comportamento, até que inconscientemente comecei a tomar os modos de um homem do mundo, não obstante meu passado de reclusão. Minha língua, silenciosa de costume, deslizava com a graça fácil e volúvel de um Chesterfield ou com o cinismo ateu de um Rochester. Passei a exibir uma peculiar erudição, totalmente distinta do saber fantástico e monacal sobre o qual me esfalfara em minha juventude, bem como a cobrir as guardas de meus livros com fáceis epigramas de improviso, os quais evocavam acentos de Gay, Prior e a engenhosidade vivaz dos augustanos. Certa manhã, durante o desjejum, cheguei à beira do desastre, ao declamar com acentos de efusão palpavelmente alcoólica de uma jovialidade setecentista, uma peça de jocosidade georgiana nunca registrada em livro, que dizia mais ou menos o seguinte:

    Tragam aqui, meus rapazes, seus canecos de cerveja

    E bebam ao dia de hoje, antes que já não mais seja.

    Encham seus pratos de bifes, empilhando-os em montanha,

    Pois só beber e comer é o que da vida se ganha.

    Encham suas taças,

    Pois a vida passa,

    E depois ao rei e à amada não há quem um brinde faça.

    O nariz de Anacreonte era vermelho, se diz;

    Mas o que é um nariz vermelho quando se é alegre e feliz?

    Melhor ser vermelho agora – Deus me castigue! – que estar

    Branco como um lírio ou morto antes de o ano acabar!

    Venha, Betty, em festa,

    Beije-me na test
    a;

    Filha de estalajadeiro no inferno não há como esta!

    Que o jovem Harry ainda esteja de pé nos causa surpresa,

    Logo há de perder a linha e entrar debaixo da mesa;

    Mas encham bem suas taças, passem-nas de mão em mão,

    Melhor embaixo da mesa do que debaixo do chão!

    Que reine o festim,

    Que bebam por mim:

    Sob sete palmos de terra não se ri tão bem assim!

    Que o diabo me carregue, se mal me agüento de pé

    e, com todos os demônios, se de mim ainda dou fé!

    Aqui, patrão, mande Betty chamar um carro, que eu vou

    correr para casa, enquanto minha esposa não chegou!

    Alguém me sustente,

    Antes que eu me sente:

    Que enquanto em cima da terra estou feliz e contente.

    Por essa época é que adquiri meu medo atual ao fogo e aos temporais. Indiferente até então a tais coisas, tinha por eles agora um indizível horror e me retiraria para os recantos mais profundos da casa assim que nos céus se anunciassem quaisquer sinais de eletricidade. Um de meus abrigos favoritos durante o dia era o porão arruinado da mansão que se incendiara, e na imaginação eu reconstituía a estrutura tal qual teria sido em seus primórdios. Em certa ocasião, deixei pasmado um aldeão ao conduzi-lo secretamente até um sub-porão de teto baixo, de cuja existência eu parecia saber a despeito do fato de ele ter ficado oculto e esquecido por muitas gerações.

    Por fim aconteceu o que eu há muito temia. Meus pais, alarmados com a alteração de maneiras e aparência de seu único filho, começaram a exercer sobre meus movimentos uma amável espionagem, a qual ameaçava resultar em desastre. Eu nada dissera acerca de minhas visitas à tumba, tendo guardado meu propósito secreto com zelo religioso desde a infância, mas agora me via forçado a ter cautela quando penetrava os labirintos da depressão brenhosa, não fosse estar sendo seguido às ocultas. Minha chave para a cripta eu a mantinha pendurada num cordão no pescoço, como um segredo que só eu conhecia. Nunca trouxe para fora do sepulcro qualquer das coisas que encontrei por entre aquelas paredes.

    Certa manhã, quando saí da tumba úmida e prendi as correntes do portal com pouca firmeza, lobriguei numa macega próxima a face horrorizada de um bisbilhoteiro. Por certo o fim estava próximo, pois meu recanto fora descoberto e o objetivo de minhas jornadas noturnas fora revelado. O homem não me abordou, de modo que me apressei a chegar a casa, a fim de descobrir o que ele reportaria ao meu pai preocupado. Seriam minhas incursões para além da porta trancada reveladas ao mundo? Imaginem com que espanto deleitoso ouvi meu espião informar a meu pai, num cauteloso sussurro, que eu tinha passado a noite na clareira em frente à tumba, meus olhos baços de sono fixados na fenda da porta não de todo fechada! Que milagre ocorrera a ponto de iludir assim esse observador? Convenci-me de que um agente sobrenatural me protegera. Na audácia que tal circunstância, enviada do céu, me dava, passei a ir, sem nenhuma dissimulação, à cripta, na confiança de que ninguém testemunharia minha entrada. Durante uma semana provei à saciedade as alegrias daquele convívio sepulcral, o qual não descreverei, até que a coisa aconteceu e me vi arrastado para este maldito lugar de tristeza e melancolia.

    Não devia ter me aventurado a sair naquela noite, pois indícios de trovões relampejavam nas nuvens e uma fosforescência infernal subia do pântano ao fundo do vale. Também o chamado dos mortos estava diferente. Em vez da tumba na encosta, era o demônio que presidia o porão chamuscado no topo da elevação que me acenava com dedos invisíveis. Quando saí de um matagal intermediário para o plaino diante da ruína, descobri sob o luar nebuloso uma coisa pela qual sempre esperara vagamente. A mansão, destruída havia um século, mais uma vez se erguia no alto como uma visão arrebatadora, todas as janelas a brilhar com o esplendor de muitas velas. Pela longa estrada rodavam as carruagens da elite de Boston, enquanto a pé se aproximava um numeroso ajuntamento de janotas empoados, provenientes das mansões vizinhas. Misturei-me a essa multidão, conquanto estivesse certo de pertencer mais ao dos anfitriões que ao dos hóspedes. Para além do saguão havia música, gargalhadas e vinho em todas as mãos. Reconheci muitas faces, e as teria reconhecido melhor ainda se as visse ressequidas ou carcomidas pela morte e pela decomposição. Em meio a essa turba selvagem e estouvada, eu era o mais selvagem e o mais debochado. Alegres blasfêmias jorravam de meus lábios, e em chocantes gracejos eu desprezava as leis de Deus ou da natureza.

    Súbito, o estrondo de um trovão, muito mais forte que a algazarra do imundo festim, rompeu o telhado e fez baixar um enorme silêncio sobre a companhia turbulenta. Línguas vermelhas de fogo e golfadas de calor ardente envolveram a casa, e os participantes, tomados pelo pavor de uma iminente calamidade que parecia transcender os limites da natureza desgovernada, fugiram aos gritos noite adentro. Somente eu permaneci, preso ao meu assento por um medo humilhante que nunca antes sentira. E então um segundo horror tomou conta de minha alma. Queimado vivo até às cinzas, meu corpo disperso aos quatro ventos, eu nunca poderia jazer no túmulo dos Hydes! Não estava meu caixão já preparado para mim? Não tinha eu o direito de descansar até a eternidade entre os descendentes de Sir Geoffrey Hyde? Ai! eu exigiria minha herança de morte, mesmo que minha alma vagasse através das eras à procura de uma nova habitação corpórea, que a representaria sobre aquela laje desocupada na alcova da cripta. Jervas Hyde não deveria jamais compartilhar do triste destino de Palinuro!

    Quando o fantasma da casa incendiada desapareceu, encontrei-me a gritar e a me contorcer loucamente nos braços de dois homens, um dos quais era o espião que me seguira até a tumba. A chuva caía torrencialmente, e sobre o horizonte, na direção sul, viam-se os clarões dos relâmpagos que há pouco tinham passado sobre nossas cabeças. Meu pai, a face transtornada de pesar, estava ao lado, enquanto eu ordenava aos berros que me colocassem na tumba, admoestando freqüentemente os meus capturadores para me tratarem com a máxima consideração. Um círculo escuro sobre o piso do porão arruinado sugeria uma carga violenta dos céus, e era nesse local que um grupo de aldeões curiosos estava a examinar com lanternas uma caixa pequena de fabricação antiga, que a explosão do raio trouxera à luz.

    Cessando minhas contorções fúteis e sem sentido, observei os espectadores enquanto olhavam o pequeno tesouro e obtive permissão para compartilhar de suas descobertas. A caixa, cujo fecho tinha se partido com o golpe que a desenterrara, continha alguns papéis e objetos de valor, mas eu só tinha olhos para uma coisa. Tratava-se da miniatura em porcelana de um homem jovem usando uma peruca caprichosamente encaracolada, a qual portava as iniciais “J. H.” Quanto à face, sua conformação era tal como se eu estivesse a me olhar no espelho.

    No dia seguinte, trouxeram-me a este quarto que tem grades nas janelas, mas tenho sido informado sobre certas coisas por um homem velho, de mentalidade rude, por quem nutro simpatia desde a infância, o qual, tal como eu mesmo, também é amante de cemitérios. O que ousei relatar de minhas experiências na cripta trouxe-me apenas sorrisos de piedade. Meu pai, que me visita com frequência, assevera que em tempo algum atravessei o portal lacrado pelas correntes e jura que, quando o examinou, o cadeado enferrujado tem estado como sempre esteve ao longo de cinquenta anos. 

    Chega mesmo a dizer que toda a comunidade sabia de minhas idas ao túmulo e que eu era muitas vezes vigiado enquanto dormia na clareira da encosta, meus olhos semicerrados fixos na fenda que conduz ao interior. Contra essas afirmações não tenho nenhuma prova tangível, até porque a chave para o cadeado se perdeu na luta durante aquela noite de horrores. As coisas estranhas do passado que aprendi durante aqueles encontros noturnos com os mortos ele as reputa como meros frutos de minha vida pregressa de onívora perscrutação sobre volumes antigos da biblioteca da família. Não fosse pelo meu velho serviçal Hiram, eu hoje estaria convencido de minha loucura.

    Mas Hiram, leal até o fim, conservou sua fé em mim e fez aquilo que me impele a trazer a público pelo menos uma parte de minha história. Há uma semana, ele quebrou o cadeado que prende a porta da tumba em sua posição perpetuamente semicerrada e desceu com uma lanterna até as profundezas sombrias. Sobre uma laje, numa alcova, encontrou um velho mas ainda vazio caixão cuja inscrição deslustrada contém uma simples palavra: Jervas. Nesse caixão e nessa cripta é que me prometeram que serei enterrado.

    Autor: H. P. Lovecraft

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