agosto 2019

Flexslider

    Marquês de Sade | O corno de si próprio

    Um dos maiores defeitos das pessoas mal-educadas é expor uma porção de indiscrições, maledicências ou calúnias sobre tudo o que respira, e isso diante das pessoas que não conhecem; não se poderia imaginar a quantidade de casos que se tornaram o fruto de semelhantes falatórios: qual é o homem honesto, com efeito, que ouvirá falar mal do que o interessa sem dar reparo aos malefícios a que o expõe?

    Não se faz com que esse princípio de sábia moderação penetre o bastante a educação dos jovens, não se lhes ensina o suficiente a conhecer o mundo, os nomes, as qualidades, as atinências das pessoas com as quais é-lhes dado conviver; coloca-se, no lugar desse princípio, mil asneiras que só servem para a conspurcação, no exato momento em que se alcança a idade da razão.

    Sempre faz lembrar capuchinhos ensinando, a todo instante, beatices, hipocrisias ou inutilidades, e nunca uma boa máxima de moral. Ide mais longe, interrogar um jovem sobre seus verdadeiros deveres para com a sociedade, perguntai-lhe o que deve a si mesmo e aos outros, de que modo é preciso conduzir-se a fim de ser feliz: ele vos responderá que se lhe ensinou a ir à missa e rezar litanias, mas que nada compreende do que quereis dizer-lhe; que se lhe ensinou a dançar, a cantar, mas não a viver entre os homens.

    O caso que se tomou a consequência do inconveniente que descrevemos não foi sério a ponto de causar derramamento de sangue, disso não resultando senão um gracejo; e é para esmiuçá-la que iremos abusar alguns minutos da paciência de nossos leitores.


    O sr. Raneville, de cinquenta anos aproximadamente, tinha um desses temperamentos fleumáticos que não deixam de exercer, em absoluto, certo encanto no mundo: rindo pouco, mas fazendo os outros rirem muito; pelas tiradas de seu espírito mordaz e pela maneira frívola com que as proferia, amiúde encontrava, unicamente por seu silêncio, ou pelas expressões burlescas de sua fisionomia taciturna, o segredo de divertir mil vezes mais os círculos em que era admitido do que esses tagarelas maçadores sem vivacidade, monótonos, tendo sempre um conto a vos narrar do qual riem uma hora antes, sem ser bastante felizes para alegrar sequer um minuto quantos o escutam.

    Tinha ele um importante emprego no departamento do fisco, e, para se consolar de um péssimo casamento outrora contraído em Orléans, após ter por lá deixado sua mulher desonesta, em Paris despendia sem preocupação vinte ou vinte e cinco mil libras de renda com uma mulher belíssima a quem sustentava, e com alguns amigos tão amáveis quanto ele.

    A amante do sr. Raneville não era propriamente uma moça, mas uma mulher casada e, por consequência, mais ardente, pois, mesmo que se queira negar, essa pitada de sal do adultério acrescenta com frequência grande sabor a um gozo; era ela muito bonita, com seus trinta anos, e tinha o mais belo corpo que é possível achar; separada do marido, medíocre e desagradável, viera da província em busca de fortuna em Paris, e não demorara muito para a encontrar.

    Raneville, naturalmente libertino, à espreita de todo bom pedaço, não deixara escapar este e, havia três anos, por mui honesto tratamento, fineza e dinheiro, fazia com que essa jovem esquecesse todas as decepções que outrora aprouve ao himeneu disseminar em seu caminho.

    Ambos, tendo aproximadamente o mesmo destino, consolavam-se de maneira mútua, e se certificavam dessa grande verdade que, entretanto, não corrige ninguém, segundo a qual só há tantos casamentos maus e, em consequência, tanta infelicidade no mundo, porque pais avaros ou imbecis unem mais as fortunas do que os temperamentos: pois – dizia amiúde Raneville à sua amante –, é bem certo que se o acaso nos tivesse unido, em vez de nos dar, a vós, um marido tirano e ridículo, e a mim, uma mulher prostituta, as rosas teriam nascido aos nossos pés em vez dos espinhos que por tanto tempo colhemos.

    Um acontecimento corriqueiro, do qual é bastante desnecessário falar, levou certo dia o sr. Raneville a essa aldeia lamacenta e insalubre denominada Versalhes, onde reis feitos para serem adorados em sua capital parecem fugir à presença de súbditos que os procuram, onde a ambição, a avareza, a vingança, e o orgulho levam diariamente uma multidão de infelizes nas asas do tormento a sacrificar ao ídolo do momento, onde a elite da nobreza da França, que poderia desempenhar um papel importante em suas terras, consente vir se humilhar em ante-câmaras, adular de modo vil porteiros, ou mendigar humildemente uma refeição pior do que a sua para alguns desses indivíduos que a sorte arranca, por uns momentos, às nuvens do esquecimento, a fim de os recolocar lá pouco depois.

    Tendo resolvido seus negócios, o sr. Raneville monta num desses coches da corte denominados “penicos”, e, lá se encontra fortuitamente em companhia de um certo Dutour, muito tagarela, bem gordo e pesado, grande trocista, também empregado no departamento do fisco, só que em Orléans, sua terra, a qual, conforme disse há pouco, é igualmente a do sr. Raneville.

    Trava-se a conversa, Raneville sempre lacónico e sem jamais se revelar, já sabe o nome, o sobrenome, a cidade e a ocupação do seu companheiro de estrada, antes de dizer sequer uma palavra.

    Tendo informado esses detalhes, o sr. Dutour adentra um pouco mais naqueles da sociedade.

    – Vós estivestes em Orléans, senhor – diz Dutour –, segundo me parece, acabais de afirmar isso.
    – Em tempos passados, lá residi alguns meses.
    – E conhecestes, dizei-me, certa sra. Raneville, uma das maiores p. do mundo que já moraram em Orléans?
    – Sra. Raneville, uma mulher bastante bonita.
    – Exato.
    – Sim, eu a conheci em certa ocasião. Pois bem, eu vos direi confidencialmente que a possuí, por três dias, como se faz com uma p. Com toda certeza, se há um marido cornudo, pode-se dizer que ele é esse pobre Raneville.
    – E o conheceis?
    – Não, só de nome; trata-se de pessoa má, que se arruína em Paris, segundo dizem, com moças e devassos como ele.
    – Nada vos direi sobre ele; não o conheço, mas compadeço-me dos maridos cornos; não o sois, por acaso, senhor?
    – A qual dos dois vos referis, ao marido ou ao corno?
    – A um e outro; essas coisas estão de tal forma ligadas hoje em dia que na verdade é muito difícil diferenciá-las.
    – Sou casado, senhor; tive a infelicidade de desposar uma mulher que comigo não se satisfez; e como seu temperamento me conviesse muito pouco, nós nos separamos amigavelmente, ela preferiu vir para Paris partilhar da solidão de uma de suas parentas, religiosa do convento de Sainte-Aure, e reside nessa casa, de onde me envia notícias suas de vez em quando, porém de maneira nenhuma a vejo.
    – Ela é devota?
    – Não; mas talvez eu tivesse preferido isso.
    – Ah! eu vos compreendo. E vós não tivestes sequer a curiosidade de vos informar sobre sua saúde, nesta vossa estada a que ora vos obrigam vossos negócios em Paris?
    – Em verdade, não, não gosto dos conventos: amigo dos prazeres, da alegria, criado para os entretenimentos, festejado nos círculos sociais, não ouso em absoluto ir me arriscar num locutório há pelo menos seis meses de vapores.
    – Mas uma mulher...
    – ... É um indivíduo que pode interessar quando dela nos ser-vimos, mas da qual devemos saber nos separar quando sérias razões dela nos afastam.
    – Há severidade no que dizeis.
    – Absolutamente... sabedoria... é o tom do presente, é a linguagem da razão; devemos adotá-la, ou passar por idiotas.
    – Isso supõe algum desvio em vossa mulher; explicai-me isso: desvio de natureza, de complacência ou de conduta.
    – Um pouco de tudo... um pouco de tudo, senhor, mas deixe-mos isso, rogo-vos, e retornemos a essa cara sra. Raneville: por Deus, não compreendo que, tendo estado em Orléans, vós não tenhais vos divertido com essa criatura... pois todos a possuíram.
    – Todos, não, pois bem vedes que eu não a possuí: não gosto de mulheres casadas.
    – E sem querer ser por demais curioso: com quem passais vosso tempo, senhor, eu vos pergunto?
    – Primeiramente com meus negócios, e, em seguida, com uma criatura bastante bonita, com quem janto de vez em quando.
    – Não sois casado, senhor?
    – Sou.
    – E vossa mulher?
    – Ela se encontra na província, e deixo-a lá, assim como deixais a vossa em Sainte-Aure.
    – Casado, senhor, casado, e seríeis da confraria? Por favor, respondei-me.
    – Não vos disse que esposo e corno são sinónimos? A depravação dos costumes, o luxo... tantas coisas que fazem uma mulher decair.
    – Oh! é bem verdade, senhor, é bem verdade.
    – Respondeis como homem sábio.
    – Não, absolutamente; se bem que, senhor, uma belíssima pessoa vos consola à ausência da esposa abandonada.
    – Sim, na verdade, uma belíssima pessoa; quero que a conheceis.
    – Senhor, eu ficaria muito honrado.
    – Oh! nada de cerimónias, senhor; eis-nos ao nosso destino; deixo-vos livre esta noite, por causa de vossos negócios, mas amanhã sem falta espero-vos para jantar no endereço que vos entrego.

    E Raneville tem o cuidado de dar um endereço falso, no qual pronto adverte, a fim de que os que vierem perguntar por ele chamando-o por este nome o possam encontrar com facilidade.

    No dia seguinte, o sr. Dutour por razão nenhuma falta ao encontro, e, tendo sido tomadas as precauções, de modo a fazer com que, com um nome fictício, a ele fosse dado encontrar Raneville na residência, ele entra sem dificuldade. Aos primeiros cumprimentos, Dutour parece inquieto por não vislumbrar ainda a divindade que espera ver.

    – Homem impaciente – diz-lhe Raneville – daqui vejo o que procuram vossos olhos... prometi-vos uma bela mulher; já desejaríeis voltear em sua presença; acostumado a desonrar a fronte dos maridos de Orléans, desejaríeis, estou bem certo disso, tratar da mesma forma os amantes de Paris: aposto como estaríeis bem contente de me colocardes na mesma condição desse infeliz Raneville, de quem ontem me falastes de modo tão divertido.

    Dutour responde como homem galante, como pretensioso e, consequentemente, como tolo, a conversação se torna divertida por uns instantes e Raneville, tomando o amigo pela mão:

    – Vinde – diz-lhe –, homem cruel! Vinde ao próprio templo onde a divindade vos espera.

    Dizendo isso, ele faz com que Dutour entre num gabinete luxurioso, onde a amante de Raneville, preparada para o gracejo e, tendo a palavra, encontrava-se no mais elegante déshabillé, sobre uma otomana de veludo, porém velada: nada ocultava a elegância e a exuberância de seu porte, apenas era impossível ver-lhe o rosto.

    – Eis uma pessoa belíssima – exclama Dutour – mas por que me privar do prazer de admirar suas feições, estamos aqui, portanto, no harém do grande Senhor?
    – Não, não é preciso comentários; trata-se de pudor.
    – Como, de pudor?
    – Seguramente; acreditais que eu queira me limitar a vos mostrar somente o porte ou o déshabillé de minha amante; meu triunfo seria completo se, ao retirar todos esses véus, eu vos convencesse do quanto devo estar feliz pela posse de tão fartos encantos. Como essa jovem fosse singularmente modesta, enrubesceria com tais detalhes; ela bem quis concordar com isso, mas sob a cláusula expressa de estar coberta. Sabeis o que é o pudor e as delicadezas das mulheres, sr. Dutour; não é a um homem elegante com trajes da moda como vós que se prescreveria acerca de tais coisas!
    – Como, por Deus, ireis me mostrar?
    – Tudo, já vos disse; ninguém tem menos ciúme do que eu; a felicidade que se experimenta sozinho me parece insípida; só encontro satisfação junto à outra pessoa com quem compartilho.

    E para constatar suas máximas, Raneville começa por retirar um lenço de gaze que revela nesse instante o mais belo pescoço que é possível deslumbrar... Dutour se inflama.
    – E então – diz Raneville –, o que achais disso?
    – São os atributos da própria Vênus.
    – Acreditai: seios tão alvos e firmes são feitos para incendiar... tocai-os, meu camarada! os olhos algumas vezes nos enganam; minha opinião é a de que, em matéria de volúpia, é preciso valer-se de todos os sentidos.

    Dutour estende a mão trémula, apalpa, com êxtase, o mais belo seio do mundo, e não deixa de se surpreender com a incrível complacência de seu amigo.

    – Vamos, mais para baixo! – diz Raneville, levantando até o ventre uma saia leve de tafetá, sem que nada se oponha a essa incursão – pois bem! o que dizeis dessas coxas? Acreditais que o templo do amor possa ser sustentado por colunas mais belas do que essas?

    E o caro Dutour, continuando a apalpar tudo o que Raneville lhe exibia:

    – Patife! adivinho vossos pensamentos – continua o complacente amigo –, esse delicado templo, que as próprias Graças cobriram de um musgo suave... ardeis com desejos de entreabri-lo, não é verdade?
    O que digo; com vontade de lá colher um beijo, isso sim.

    E Dutour transtornado... balbuciando... não respondia mais se-não pela violência das sensações das quais seus olhos eram os instrumentos; encorajam-no... seus dedos libertinos acariciam os pórticos do templo que a própria volúpia descerra a seus desejos: esse beijo divino permitido, ele o dá, e por uma hora o saboreia.
    – Amigo – diz ele –, não aguento mais! expulsai-me de vossa casa, ou permiti que eu siga em frente.
    – Como? Em frente? E para que diabo de lugar desejas ir, respondei-me?
    – Pobre de mim; vós não me compreendeis de modo algum; estou inebriado de amor, não posso mais me conter.
    – E se essa mulher é feia?
    – É impossível sê-lo com encantos tão divinos.
    – Se ela é...
    – Que ela seja tudo o que quiser, eu vos digo, meu caro; não posso mais resistir a isso.
    – Segui em frente, portanto, terrível amigo, segui; satisfazei-vos, pois que é preciso: sereis pelo menos grato por minha complacência?
    – Ah! Terei a maior gratidão, sem dúvida. E Dutour com a mão afastava delicadamente o amigo, como que para deixá-lo a sós com essa mulher.
    – Oh! para deixar-vos, não, não posso – diz Raneville –, mas sois, assim, tão escrupuloso que não podeis vos contentar com mi-nha presença? Entre homens não se age absolutamente desse mo-do: de resto, são minhas condições; ou diante de mim, ou nada.
    – Fosse diante do diabo – diz Dutour, não se contendo mais e precipitando-se ao santuário onde seu incenso vai se queimar –, se assim quereis, concordo com tudo...
    – Pois bem – dizia de modo fleumático Raneville – as aparências vos enganaram, e as delícias prometidas por tão diversos en-cantos são ilusórias ou reais... Ah! nunca, nunca vi algo de tão voluptuoso.
    – Mas esse maldito véu, amigo, esse véu pérfido: não me será permitido retirá-lo?
    – Sim... no último momento, naquele momento tão deleitável, em que todos os nossos sentidos, seduzidos pela embriaguez dos deuses, ela sabe nos tomar tão afortunados quanto eles próprios, e amiúde bem superiores. Essa surpresa dobrará vosso êxtase: ao en-canto de usufruir a própria Vénus, vós acrescentareis as inexprimíveis delícias de contemplar as feições de Flore, e tudo isso se unindo a fim de aumentar vossa felicidade; mergulhareis com bem mais facilidade nesse oceano de prazeres, onde o homem encontra com tanta satisfação o consolo de sua existência... Vós me fareis um si-nal...
    – Oh! como podeis ver – diz Dutour –, sinto-me arrebatado neste momento.
    – Sim, estou vendo; sois fogoso.
    – Mas fogoso a um ponto... ó meu amigo! atinjo este instante celeste! arrancai, arrancai esses véus, que eu contemple o próprio firmamento.
    – Ei-lo – diz Raneville fazendo desaparecer o véu –, mas cui-dado para não encontrardes talvez, um pouco perto desse paraíso o inferno!
    – Oh! pelos céus – exclama Dutour, ao reconhecer sua mulher – ... O quê? Sois vós, senhora?... senhor, que estranho gracejo! vós mereceríeis... essa celerada...
    – Um momento, um momento, homem fogoso! sois vós que mereceis tudo; aprendei, meu amigo, que é preciso ser um pouco mais cauto com as pessoas que não se conhece do que o fostes comigo ontem.
    Esse infeliz Raneville que haveis tratado tão mal em Orléans... sou eu mesmo, senhor; como vedes, eu o retribuo a vós em Paris; de resto, aqui estais, bem mais avançado do que poderíeis crer; pensáveis ter feito corno de mim e acabais de fazê-lo de vós mesmo.

    Dutour aprendeu a lição, estendeu a mão ao amigo, e concordou que recebera o que havia merecido.
    – Mas essa pérfida...
    – Pois bem, ela não vos imita? Qual é a lei bárbara que faz acorrentar desumanamente esse sexo, concedendo-nos toda a liberdade? É ela equitativa? E por que direito natural encerrais vossa mulher em SainteAure, enquanto, em Paris e em Orléans, fazeis os maridos cornos? Meu amigo, isso não é justo, essa encantadora criatura, cujo valor não soubesses reconhecer, veio em busca de outras conquistas: ela teve razão; encontrou-me; faço sua felicidade; fazei a da sra. Raneville; concordo com isso, vivamos felizes os quatro, e que as vítimas do destino não se tornem as dos homens.

    Dutour achou que seu amigo tinha razão, mas por uma fatalidade inconcebível, tornou a se apaixonar com a mão loucamente por sua mulher; Raneville, por mais cáustico, tinha a alma bela demais para resistir aos pedidos de Dutour quanto a recuperar sua mulher, a jovem concordou com isso, e houve nesse acontecimento único, sem dúvida, um exemplo bem singular dos golpes do destino e dos caprichos do amor.

    Marquês de Sade | O marido que recebeu uma lição

    Um homem já na decadência pensou em se casar embora até aquele momento tivesse passado sem mulher, e é possível que a coisa mais tola que fez, de acordo com os seus sentimentos, tenha sido unir-se a uma jovem de dezoito anos, com o rosto mais atraente do mundo e com a cintura não menos proveitosa. Bernac – esse era o seu nome -, fazia tolice ainda maior desposando uma mulher, porquanto se exercitava o menos possível nos prazeres que concede o himeneu, e muito faltava para que as manias por que trocava os castos e delicados prazeres dos laços conjugais agradassem a uma jovem do porte da srta. Lurcie, pois assim se chamava a infeliz a quem Bernac acabava de participar seu destino.

    Desde a primeira noite de núpcias, ele relatou suas preferências à jovem esposa, após tê-la feito jurar nada revelar aos pais dela; tratava-se assim diz o célebre Montesquieu – de procedimento ignominioso que leva de volta à infância: a jovem mulher, na postura de uma menina que merece um corretivo, se prestava então por quinze ou vinte minutos, mais ou menos, aos caprichos bestiais do velho esposo, e era à vista dessa cena que ele conseguia experimentar a deliciosa embriaguez do prazer que todo homem mais bem organizado que Bernac decerto teria desejado sentir apenas nos braços encantadores de Lurcie. A experiência pareceu um pouco dura àquela moça delicada, bela, educada no conforto, mas longe do pedantismo; entretanto, como lhe houvessem recomendado ser submissa, julgou tratar-se aquilo de hábito comum aos esposos, e talvez até mesmo Bernac tivesse contribuído para que pensasse assim, e ela se submeteu de modo mais honesto possível à depravação do seu sátiro; todos os dias era a mesma coisa e, com freqüência, até duas vezes em vez de uma. Ao cabo de dois anos, a srta. Lurcie, que continuamos a chamar sempre por esse nome, de vez que na ocasião se achava tão virgem quanto no primeiro dia de suas núpcias, perdeu o pai e a mãe, e com eles a esperança de fazer abrandar seus sofrimentos, como começava a figurar já havia algum tempo. Essa perda só fez tornar Bernac mais audacioso, e se mantivera dentro de alguns limites, por respeito aos pais de sua mulher enquanto vivos, não demonstrou mais nenhuma moderação tão logo ela os perdeu e ele percebeu-a incapaz de quem a pudesse vingar. O que parecia de início apenas um divertimento, tornou-se pouco a pouco um verdadeiro tormento; essa srta. Lurcie não podia mais suportar isso, seu coração se exasperava, e ela sonhava o tempo todo com vingança. Via pouquíssimas pessoas; o marido a isolava tanto quanto possível. Apesar de todas as admoestações de Bernac, o primo dela, o cavalheiro d’Aldour, não deixara em absoluto de ver sua parenta; esse jovem tinha um belo rosto e não era sem interesse que teimava em visitar a prima; como fosse bastante conhecido de toda a gente, o ciumento, temendo que escarnecessem dele, não ousava muito afastar-se de sua casa… A srta. Lurcie deitara os olhos nesse parente para se libertar da escravidão na qual vivia: ouvia diariamente as belas palavras do primo, e, por fim, revelou-se por completo a ele, tudo lhe confessando.

    – Vingai-me desse homem vil – disse-lhe -, e fazei isso por meio de uma cena que o impressione o bastante para ele próprio jamais ousar falar dela a alguém: o dia em que obtiverdes êxito há de ser o dia de vossa glória; apenas a esse preço serei vossa.

    Encantado, d’Aldour tudo promete e só se empenha para o sucesso de uma aventura que vai lhe assegurar tão belos monumentos. Quando tudo está pronto:

    – Senhor – diz ele um dia a Bernac -, tenho a honra de ser muito íntimo de vós, e em vós confio o bastante para não deixar de vos participar o matrimônio secreto que acabo de contrair.

    – Um matrimônio secreto? – diz Bernac, encantado de se ver livre do rival que o fazia tremer.

    – Sim, senhor! Acabo de me unir ao destino de uma esposa encantadora, e amanhã é o dia em que ela me deve tornar feliz; confesso que se trata de uma moça sem bens; mas o que importa isso se o que tenho basta aos dois? Caso-me, é verdade, com uma família inteira, quatro irmãs que vivem juntas, porém, como me apraz a companhia delas, para mim é apenas uma felicidade a mais… Muito me alegraria, senhor – continua o jovem -, se minha prima e vós me désseis amanhã a honra de vir ao menos ao banquete de núpcias.

    – Senhor, saio muito pouco, e minha mulher menos ainda; vivemos ambos num grande retiro; ela está contente assim, e eu não a incomodo absolutamente.

    – Conheço vossas preferências, senhor – retruca d’Aldour -, e respondo-vos que sereis servido a contento… Amo a solidão tanto quanto vós e, por sinal, tenho razões de discrição, como já disse: é na campanha, faz um belo dia, tudo vos convida e dou-vos minha palavra de honra que estaremos absolutamente sozinhos.

    Lurcie a propósito deixa entrever certo desejo; seu marido não ousa contrariá-la diante de d’Aldour, e combinam o passeio.

    – Devíeis querer tal coisa – diz o homem, irritado no momento em que se vê a sós com sua mulher -, bem sabeis que absolutamente não me preocupo com tudo isso; saberei como dar fim a todos esses vossos desejos, e previno-vos de que em pouco tempo planejo isolar-vos numa de minhas terras, onde não vereis ninguém mais além de mim.

    E como o pretexto, com ou sem fundamento, acrescentasse muito aos atrativos das cenas luxuriosas às quais Bernac inventava planos quando lhe faltava o realismo, aproveitou a oportunidade, fez Lurcie passar ao seu quarto e lhe disse:

    – Iremos… Sim, eu prometi, mas pagareis caro pelo desejo que demonstrastes…

    A infeliz, acreditando estar próxima do desfecho, suporta tudo sem se queixar.

    – Fazei o que vos aprouver, senhor – diz ela humildemente -, vós me concedestes uma graça, sou-vos muito grata.

    Tanta doçura, tanta resignação teria desarmado qualquer um que não tivesse um coração tornado empedernido pelos vícios como o do libertino Bernac, mas nada é capaz de o deter; satisfaz-se, dorme tranqüilo; no dia seguinte, d’Aldour, conforme o combinado, vem buscar o casal e partem.

    – Vereis – diz o jovem primo de Lurcie, entrando com o marido e a mulher numa casa completamente isolada -, vereis que isso não tem lá muito jeito de uma festa popular; nenhum coche, nenhum lacaio, já vos disse; estamos completamente sozinhos.

    Entretanto, quatro mulheres altas de uns trinta anos, fortes, vigorosas e de cinco pés e meio de altura cada uma, avançam sobre a escadaria e vêm receber o Sr. e a Sra. Bernac da maneira mais honesta.

    – Eis minha mulher, senhor – diz d’Aldour, apresentando uma delas -, e estas três aqui são suas irmãs; casamo-nos esta manhã ao alvorecer, em Paris, e os esperamos para celebrar as bodas.

    Tudo se passa segundo as leis da mútua cortesia; depois de algum tempo de reunião no salão, onde Bernac se convence, para grande surpresa sua, que ele se encontra tão só quanto o pôde desejar, um lacaio anuncia o almoço, e sentam-se à mesa. Nada mais descontraído que a refeição, as quatro pretensas irmãs muito acostumadas aos repentes, trouxeram à mesa toda a vivacidade e todo o bom humor possíveis, mas como a decência não é esquecida um minuto sequer, Bernac, enganado até o fim, crê-se na melhor companhia do mundo; todavia, Lurcie encantada de ver o seu tirano numa situação difícil, divertia-se com seu primo, e, decidida em desespero de causa a renunciar enfim a uma continência que não lhe trouxera até aquele momento senão tristezas e lágrimas, bebia com ele o champanhe, inundando-o com os mais ternos olhares; nossas heroínas, que tinham de buscar forças, consagravam-se igualmente à libação, e Bernac, motivado, ainda sem conceber senão uma alegria simples em tais circunstâncias, não se poupava mais do que as outras pessoas. Entretanto, como era mister não perder a razão, d’Aldour interrompe a tempo e propõe passar ao café.

    – Por Deus, meu primo – diz ele, assim que Bernac se encontra afetado -, consenti em vir visitar minha casa; sei que sois homem de bom gosto; eu a comprei e a mobiliei propositadamente para meu casamento, mas temo ter feito um mau negócio; dir-me-eis vossa opinião, por favor.

    – De bom grado – diz Bernac -, ninguém como eu entende mais dessas coisas, e estimarei tudo a mais ou menos dez luíses de diferença, garanto.

    D’Aldour lança-se sobre as escadas dando a mão a rua bela prima, posicionam Bernac no meio das quatro irmãs, e penetram nessa ordem num apartamento muito escuro e muito afastado, absolutamente ao extremo da casa.

    – É aqui a câmara nupcial – diz d’Aldour ao velho ciumento -, vedes essa cama, meu primo; eis onde a esposa vai deixar de ser virgem; ela já não arde de desejos tempo demais?

    Era o sinal: no mesmo instante, nossas quatro malandras saltam sobre Bernac, armadas cada uma de um punhado de varas; retiram-lhe as calças, duas delas o imobilizam, e as outras duas se alternam para fustigá-lo e enquanto o molestam vigorosamente:

    – Meu caro primo – exclama d’Aldour -, não vos disse ontem que seríeis servido a contento? Não imaginei nada melhor para agradar-vos do que devolver-vos o que dais todos os dias a essa encantadora mulher; vós não sois bastante bárbaro para fazer-lhe uma coisa que não gostaríeis de receber; assim, orgulho-me de fazer-vos minha corte; falta ainda uma circunstância, portanto, à cerimônia; minha prima, segundo dizem, embora há muito esteja ao vosso lado, ainda é tão virgem como se vós tivésseis vos casado apenas ontem; tal abandono de vossa parte provém unicamente da ignorância, seguramente; garanto que é por que não sabeis como proceder… Vou mostrar-vos, meu amigo.

    Ao dizer isso, tendo ao fundo uma agradável música, o homem fogoso deita sua prima na cama e a torna mulher aos olhos de seu indigno esposo… Só nesse momento termina a cerimónia.

    – Senhor – diz d’Aldour a Bernac ao descer do altar -, achareis a lição talvez um pouco severa, mas admiti que o ultraje a que submetíeis vossa esposa era, pelo menos, igual; não sou, nem quero ser, amante de vossa mulher; ei-la, devolvo-a, mas vos aconselho a comportar-vos doravante de maneira mais honesta com ela, caso contrário, ela ainda encontraria em mim um vingador que vos pouparia ainda menos.

    – Senhora – diz Bernac furioso -, na verdade esse procedimento…

    – É o que vós merecestes – responde Lurcie -, mas se ele vos desagrada, entretanto, tendes toda a liberdade de expressá-lo; exporemos cada um nossas razões, e veremos de qual dos dois rirá o povo.

    Bernac, confuso, reconhece seus erros, não inventa mais sofismas para legitimá-los, lança-se aos joelhos de sua mulher para rogar seu perdão: Lurcie, terna e generosa, o levanta e abraça, ambos retornam a sua casa, e não sei que meios utilizou Bernac, mas desde esse dia, nunca a capital viu casal mais unido, amigos mais ternos e esposos mais virtuosos.

    Edgar Allan Poe | Manuscrito Encontrado numa Garrafa

    Qui n’a plus qu’un moment à vivre
    N’a plus rien à dissimuler.
    Quinault, Atys

    Quem tem apenas um momento mais de vida

    Nada mais tem a dissimular.

    Da minha terra e da minha família pouco tenho a dizer. Os maus costumes e o acumular dos anos afastaram-me da primeira e alhearam-me da segunda. O meu patrimônio proporcionou-me uma educação pouco comum e uma disposição de espírito contemplativa permitiu-me ordenar metodicamente as aquisições diligentemente reunidas pelo estudo precoce. O estudo dos filósofos alemães fez particularmente as minhas delícias: não por qualquer mal-avisada admiração pela sua eloquente loucura, mas antes pela facilidade com que os meus hábitos de raciocínio rigoroso me facultavam a detecção dos seus erros. Fui muitas vezes admoestado pela aridez do meu gênio; imputavam-me, como se de um crime se tratasse, falta de imaginação, e o pirronismo das minhas opiniões sempre me tornou notado. De fato, receio bem que uma forte atração pela filosofia física me tenha impregnado o espírito de um defeito muito comum nesta época: refiro-me ao hábito de reportar os acontecimentos, mesmo os menos susceptíveis de o serem, aos princípios de tal ciência. Em suma, ninguém seria menos dado que eu a deixar-se desviar das estritas fronteiras da verdade pelos ignes fatui da superstição. Achei que se justificaria esta introdução, sob pena de o incrível relato que se segue ser tomado mais pelo delírio de uma imaginação desenfreada do que pela experiência positiva de um espírito para o qual os devaneios da fantasia sempre foram letra morta e coisa de nulo valor.

    Após muitos anos passados em deslocações pelo estrangeiro, larguei no ano de 18… do porto de Batávia, na rica e populosa ilha de Java, em viagem ao arquipélago de Sunda. Embarquei como passageiro, sem outro estímulo que não fosse uma qualquer nervosa irrequietude que me obcecava como espírito maléfico.

    O nosso navio era um belo veleiro de umas quatrocentas toneladas, construído de teca do Malabar em Bombaim. Levava um carregamento de algodão em rama e azeite, proveniente das ilhas Lacadivas. Transportávamos ainda fibra de coco, açúcar mascavado, manteiga, cocos e algumas caixas de ópio. A estiva tinha sido feita de modo descuidado, pelo que o navio ia adornado.

    Largamos sob um tênue bafejo de vento e mantivemo-nos durante vários dias ao longo da costa oriental de Java, sem mais incidentes que iludissem a monotonia da nossa singradura para além do encontro ocasional com alguns grabs (1) do arquipélago a que nos mantínhamos confinados.

    Uma tarde, debruçado à balaustrada da popa, observei uma nuvem isolada muito estranha, a noroeste. Era singular, quer pela cor, quer por ser a primeira com que deparávamos desde a largada de Batávia. Contemplei-a atentamente até ao sol-pôr, altura em que alastrou repentinamente para leste e oeste, cercando o horizonte de uma estreita faixa de vapor e assemelhando-se a uma baixa linha de costa. Não tardou que a minha atenção fosse subseqüentemente atraída pelo aspecto vermelho-escuro da Lua e pelo invulgar estado do mar. Este sofreu uma rápida alteração e a água parecia mais transparente do que o habitual. Embora conseguisse ver distintamente o fundo, ao lançar a sonda verifiquei que a profundidade local era de vinte braças. O ar tornara-se agora intoleravelmente quente e estava carregado de exalações espirais semelhantes às que se desprendem do ferro quando aquecido. Com o tombar da noite, o vento caiu totalmente, sendo impossível conceber calmaria mais completa. A chama da lanterna sobre a popa ardia sem o menor movimento perceptível, e um cabelo comprido, seguro entre o polegar e o indicador, pendia sem que pudesse observar-se a mais pequena ondulação. No entanto, como o comandante dissesse que não se apercebia de qualquer indício de perigo, e uma vez que estávamos a abater totalmente para terra, mandou ferrar as velas e fundear. Não se passou a regime de quartos e a tripulação, constituída principalmente por malaios, veio deitar-se deliberadamente no convés. Desci aos alojamentos – não sem um forte pressentimento de desastre. De facto, todas as aparências me levavam a suspeitar da aproximação do simum. Dei parte dos meus temores ao comandante, mas este não prestou a menor atenção às minhas palavras e deixou-me sem ao menos se dignar de responder. Todavia, a inquietação não me deixou dormir e, perto da meia-noite, subi ao convés. Ao colocar o pé no último degrau da escada, fui surpreendido por um forte ruído sussurrante como produzido por rápida rotação de moinho e, antes que pudesse averiguar o seu significado, apercebi-me de que o navio estremecia na direção do seu centro. No instante imediato, um cachão de espuma fez-nos adornar subitamente e, passando sobre nós, varreu todo o convés de popa a proa.

    A extrema violência do choque veio, em grande parte, a ser a salvação do navio. Embora completamente inundado, quando os mastros foram pela borda fora, ergueu-se pesadamente das águas um minuto depois e, vacilando um instante sob a intensa pressão da tempestade, endireitou-se finalmente.

    Não sei dizer por que milagre escapei à destruição. Atordoado pelo embate de água, dei por mim, uma vez refeito, entalado entre o cadaste e o leme. com grande dificuldade, pus-me de pé e, olhando confusamente ao redor, fui inicialmente assaltado pela idéia de que estivéssemos no meio de recifes, de tal modo terrível e inimaginável era o turbilhão do oceano alteroso e espumejante em que estávamos mergulhados. Passados algum tempo ouvi a voz de um velho sueco, que embarcara conosco no momento em que largávamos do porto. Gritei-lhe com todas as forças e ele acabou por dirigir-se, a cambalear, para a popa. Depressa descobrimos que éramos os únicos sobreviventes do acidente. Todos os que estavam no convés, exceto nós, tinham sido varridos pela borda fora; o comandante e os oficiais deviam ter perecido durante o sono, visto que os camarotes se encontravam totalmente alagados. Sem auxílio, pouco poderíamos contar fazer pela segurança do navio e os nossos esforços foram de princípio paralisados pela perspectiva momentânea de irmos a pique. Era evidente que a amarra se quebrara como se fosse uma guita ao primeiro sopro do furacão, pois de contrário teríamos sido instantaneamente esmagados. Corríamos com o furacão a uma velocidade assustadora e as águas abriam brechas visíveis à nossa frente. A estrutura da popa tinha sofrido enormes danos e, praticamente sob todos os aspectos, fôramos objeto de consideráveis avarias; mas para nossa extrema alegria, descobrimos que as bombas não tinham ficado obstruídas e que o lastro não sofrera grande deslocação. A maior fúria da tempestade tinha já amainado e a violência do vento não parecia oferecer grande perigo: contudo, ansiávamos, consternados, por que ele cessasse completamente, pois estávamos em crer que, com tais estragos, inevitavelmente pereceríamos na ondulação tremenda que sobreviria. Contudo, esta justíssima apreensão não parecia de modo algum em vias de concretizar-se. Durante cinco dias e cinco noites – no decurso dos quais tivemos por único alimento uma pequena porção de açúcar mascavado, obtido com grande dificuldade no castelo da proa – o calhambeque correu a uma velocidade que desafiava qualquer cálculo, impulsionado por rajadas de vento que se sucediam rapidamente, as quais, sem contudo se compararem à violência inicial do simum, eram ainda mais terríveis do que qualquer tempestade que até então eu tivesse presenciado. O nosso rumo durante os primeiros quatro dias foi, com insignificantes variações, sueste quarta a sul, e deveríamos ir parar às costas da Nova Holanda. No quinto dia começou a fazer-se sentir um frio extremo, embora o vento tivesse rondado mais uma quarta para norte. O Sol despontou com um fulgor amarelo doentio e ergueu-se apenas alguns graus acima do horizonte – sem emitir uma luz definida. Não havia nuvens à vista, mas o vento continuava a refrescar e soprava com uma violência irregular e instável. Cerca do meio-dia, tanto quanto nos era possível estimar, a nossa atenção foi novamente desperta pela aparência do Sol. Não emitia luz propriamente dita, mas antes um clarão mortiço e soturno sem reverberação, como se todos os seus raios estivessem polarizados. Imediatamente antes de mergulhar no mar túrgido, a sua chama central extinguiu-se de súbito, como que pressurosamente apagada por algum inexplicável poder. Era apenas um arco esbatido e quase prateado ao precipitar-se no oceano insondável.

    Aguardamos em vão a chegada do sexto dia: esse dia para mim não chegou: para o sueco, não existiu sequer. De então em diante, vimo-nos amortalhados numa escuridão de breu, de tal modo que não conseguiríamos ver um objeto a vinte passo do navio. A noite eterna começou a envolver-nos, nem sequer mitigada pela fosforescência das águas a que nos habituáramos nos trópicos. Observamos igualmente que, embora a tempestade continuasse a bramir com inquebrantável violência, já não conseguia descortinar-se o habitual aparecimento de rebentação ou espuma, que até então nos havia acompanhado. À nossa volta tudo era horror, trevas profundas e um negro e abrasador deserto de ébano. Um terror supersticioso começou a invadir progressivamente o cérebro do velho sueco, e meu próprio espírito estava mergulhado em profundo espanto. Abandonáramos todos os cuidados do navio, mais do que inúteis, e, amarrando-nos o melhor que pudemos ao mastro da mezena, observávamos amargamente a imensidão do oceano. Não tínhamos maneira de calcular o tempo nem fazíamos a menor idéia de qual a nossa posição. Contudo, estávamos perfeitamente cientes de que havíamos navegado mais para sul do que qualquer outro mareante e experimentamos grande admiração por se não nos depararem os habituais obstáculos de gelo. Entrementes, cada instante ameaçava ser o último da nossa vida: não havia vaga alterosa que não se precipitasse para nos esmagar. A ondulação ultrapassava tudo o que eu imaginara possível e o fato de o mar não nos ter sepultado instantaneamente constituía um milagre. O meu companheiro referiu-se ao pouco peso da carga que transportávamos e recordou-me as excelentes qualidades do navio; fosse como fosse, eu não conseguia deixar de sentir o extremo desespero da própria esperança e preparei-me melancolicamente para a morte que acreditava nada poder adiar por mais que uma hora, visto que, a cada nó que o navio avançava, a agitação das prodigiosas águas negras se tornava cada vez mais lugubremente aterradora. Por vezes, ao elevarmo-nos mais ainda que um albatroz, perdíamos a respiração; outras ficávamos atordoados com a velocidade com que o navio se afundava em qualquer inferno aquático, onde o ar estagnava e nenhum som perturbava o sono do kraken (2).

    Encontrávamo-nos no fundo de um desses abismos quando um súbito grito do meu companheiro rompeu temerosamente na noite:

    – Olhe! Olhe! – gritou angustiadamente aos meus ouvidos. – Deus todo-poderoso! Olhe! Olhe!

    Enquanto ele falava, apercebi-me do clarão mortiço e sombrio de uma luz vermelha que se escoava de um e outro lado do abismo em que estávamos mergulhados, e lançava um brilho incerto sobre o nosso convés. Erguendo a vista, observei um espetáculo que me fez gelar o sangue nas veias. A uma altura descomunal acima de nós, e precisamente na orla precipício das águas, pairava um gigantesco navio de umas quatro mil toneladas. Apesar de alcandorado na crista de uma vaga que tinha mais de cem vezes a sua altura, as suas dimensões aparentes ainda assim excediam as de qualquer navio de linha ou da Companhia das Índias. O seu casco enorme era de um negro profundo, nem sequer atenuado por qualquer dos habituais ornatos que os navios ostentam. Uma fileira única de peças de artilharia de bronze emergia das escotilhas abertas e as suas superfícies polidas refletiam os clarões das inúmeras lanternas de combate que balouçavam de um lado para outro na mastreação. Todavia, o que fundamentalmente nos encheu de horror e espanto foi que ele navegava a todo o pano, a despeito daquele mar sobrenatural e do incontrolável furacão. Quando o avistamos a primeira vez, apenas se lhe via a proa, ao erguer-se lentamente do sombrio e horrível fosso que ia deixando para trás. Por um instante de intenso terror, deteve-se sobre o cume vertiginoso, como que imerso na contemplação da sua própria magnificência, após o que estremeceu, vacilou e… iniciou a queda.

    Nesse instante, não sei que súbita serenidade me invadiu o espírito. Avançando a cambalear para a popa o mais que me foi possível, aguardei sem receio a catástrofe que certamente nos iria esmagar. O nosso próprio navio começava a abandonar a luta e a mergulhar a proa nas águas. O choque daquela mole que se abatia atingiu-o, por conseguinte, naquele porção da estrutura que estava já sob a água, e o resultado inevitável foi precipitar-me, com irresistível violência, de encontro ao cordame do intruso.

    Quando caí, o navio aproou ao vento e virou de bordo; foi à confusão que se seguiu que atribuí o fato de ter passado despercebido aos olhos da tripulação. Não encontrei dificuldade em abrir caminho sem ser detectado até à escotilha principal, que estava parcialmente aberta, e pouco tardou que se me deparasse uma ocasião propícia para me ocultar no porão. Não sei exatamente por que razão o fiz. Talvez uma indefinida sensação de temor, que desde a primeira visão dos tripulantes do navio se me apoderara do espírito, estivesse na origem desta tentativa de buscar esconderijo. Não me sentia inclinado a confiar numa raça de gente que havia revelado, perante o olhar apressado que lhes deitara, tantos motivos de vaga estranheza, dúvida e apreensão. Julguei, pois, acertado arranjar um lugar no porão onde pudesse ocultar-me. Fi-lo deslocando uma porção de pranchas, de modo a obter um abrigo adequado entre o cavername enorme do navio.

    Mal terminara ainda a tarefa, quando o som de passos no porão me obrigou a utilizá-lo. Um homem de andar débil e incerto passou junto ao meu esconderijo. Não pude ver-lhe o rosto, mas tive ocasião de observar-lhe o aspecto geral. Apresentava indícios de idade avançada e de doença. Os joelhos vacilavam ao peso dos anos e todo o corpo estremecia sob o seu fardo. Murmurava de si para si, em tom grave e entrecortado, quaisquer palavras numa língua que não logrei distinguir e tateou a um canto entre uma pilha de instrumentos de aspecto invulgar e de cartas de navegação apodrecidas. O seu comportamento era uma estranha mistura de rabugice da segunda infância e da solene dignidade de um deus. Acabou por regressar ao convés e não voltei a vê-lo.

    * * *

    Um sentimento que não sei designar apossou-se-me do espírito: uma sensação que não admite análise, para a qual os ensinamentos do passado de nada servem e, receio, nem o porvir me fornecerá a chave. Para um espírito da estrutura do meu, esta última consideração é uma tortura. Nunca hei de ser esclarecido – sei que nunca o serei – relativamente à natureza das minhas concepções. E contudo não será de estranhar que tais concepções sejam mal definidas, posto que têm a sua origem em causas tão inteiramente inéditas. Um novo sentido – uma nova entidade – foi acrescentada à minha alma.

    Faz já muito que pisei pela primeira vez o convés deste terrível navio e julgo que os raios do meu destino convergem para um foco. Homens incompreensíveis! Imersos em meditações cuja natureza não logro adivinhar, passam por mim sem darem pela minha presença. O fato de me esconder é puro disparate da minha parte, pois esta gente não quer ver. Ainda há instantes passei diretamente pela frente do imediato; não faz muito tempo que me aventurei a penetrar mesmo no camarote individual do comandante e de lá tirei o material com o qual escrevo e tenho vindo a escrever. Continuarei este diário de quando em quando. É certo que posso não ter ocasião de transmiti-lo ao mundo, mas não deixarei de o tentar. No último momento meterei o manuscrito numa garrafa e lançá-la-ei ao mar.

    * * *

    Deu-se um incidente que me forneceu novos motivos de reflexão. Será tudo isto obra de um desordenado Acaso? Tinha-me aventurado a sair ao convés e estendi-me, sem despertar a menor atenção, no meio de um amontoado de cabos de enxárcias e de velas usadas, no fundo do escaler. Enquanto meditava sobre a singularidade do meu destino, rabisquei inconscientemente com uma brocha de alcatrão as orlas de um cutelo cuidadosamente dobrado que tinha perto de mim sobre uma barrica. O cutelo está agora envergado no navio e as pinceladas irrefletidas da brocha, com a vela esticada, formam a palavra DESCOBERTA.

    Ultimamente fiz várias observações sobre a estrutura do navio. Embora bem armado, creio que não se trata de um navio de guerra. Quer o cordame, quer a construção, quer o equipamento em geral levam a por de lado tal hipótese. O que ele não é posso eu facilmente compreender; receio é que seja impossível dizer o que é. Não sei como, mas, ao perscrutar o seu estranho modelo e a forma singular da mastreação, o seu enorme tamanho, o exagerado número de jogos de velas, a sua proa austeramente simples e a popa antiquada, acontece vir uma ou outra vez ao meu espírito uma sensação de coisas familiares, e a essas sombras indistintas da memória mistura-se sempre uma inexplicável reminiscência de velhas crônicas estrangeiras e de épocas remotas.

    Estive a observar o madeiramento do navio. O material de que é feito é-me desconhecido. Há uma característica peculiar da madeira que me choca como se a tornasse inadequada para o fim ao qual foi destinada: refiro-me à sua extrema porosidade, considerada independentemente do fato dos estragos que os parasitas provocam nestes mares e para além da podridão concomitante com a idade. Isto poderá porventura parecer uma observação algo sutil, mas esta madeira teria todas as características do carvalho espanhol se este tivesse sido distendido por quaisquer meios não naturais.

    Ao reler a frase anterior, ocorre-me intacto à memória o curioso adágio de um velho marinheiro holandês forjado nas intempéries: “É tão verdade”, costumava dizer quando alguém albergava qualquer dúvida sobre a veracidade do que contava, “como é verdade existir um mar onde o próprio navio aumenta de volume como o corpo vivo de um marinheiro”.

    Há cerca de uma hora, ousei introduzir-me num grupo de tripulantes. Não me deram a menor atenção e, embora estivesse mesmo no meio de todos eles, pareceram completamente alheios à minha presença. Tal como o que tinha visto antes no porão, qualquer deles apresentava indícios de encanecida velhice. Os joelhos tremiam-lhes de doença; tinham os ombros duplamente abaulados devido à decrepitude; os seus rostos ressequidos abanavam ao vento; as vozes eram baixas, trêmulas e entrecortadas; os olhos cintilavam-lhes com a reuma dos anos e os cabelos grisalhos tremulavam espantosamente na tempestade. Em redor deles, por todo o convés, estavam espalhados instrumentos matemáticos da mais singular e obsoleta estrutura.

    Referi um pouco atrás o envergar de um cutelo. Desde essa altura o navio, correndo com o vento, continuou a sua assustadora carreira para sul, com todo pano largado, dos topos dos mastros aos botalós dos cutelos baixos, e balançando a cada instante as vergas do joanete no mais aterrador inferno marinho que a imaginação humana possa conceber. Acabo de abandonar o convés, onde concluí ser impossível manter-me, embora a tripulação não pareça experimentar grande incomodidade. Afigura-se-me o milagre dos milagres o fato de a massa enorme de nosso navio não ser tragada de uma vez por todas. Estamos certamente condenados a pairar continuamente sobre a orla da Eternidade, sem dar um mergulho final no abismo. Deslizamos entre vagas mil mais tremendas do que alguma vez vi, com a facilidade da sagitada gaivota; e as ondas colossais erguem as cristas sobre nós como demônios das profundezas, mas como demônios limitados a meras ameaças e impedidos de destruir. Sinto-me tentado a atribuir esta repetida salvação à unica causa natural que pode explicar tal efeito: devo supor que o navio está sob a influência de uma forte corrente, de uma impetuosa ressaca.

    Vi o comandante cara a cara, e no seu próprio camarote; mas, como esperava, não me prestou atenção. Embora nada haja no seu aspecto, para um observador pouco atento, que possa sugerir ser ele alguma coisa mais ou menos do que humano, misturaram-se-me uma irreprimível reverência e temor à sensação de espanto com que o observei. A estatura dele é quase a mesma que a minha, isto é, certa de um metro e setenta. É de compleição proporcionada e compacta, sem ser robusto nem quanto ao resto digno de nota. É, porém, a singularidade da expressão que lhe anima o rosto, é o intenso, maravilhoso e empolgante testemunho de velhice, de uma tão extrema velhice que suscita no meu espírito um sentimento, uma sensação inefável. A sua fronte, conquanto pouco enrugada, parece transportar a marca de uma miríade de anos. Os seus cabelos grisalhos são registros do passado e os olhos ainda mais cinzentos são sibilas do futuro. O pavimento do camarote estava densamente juncado de in-fólios com fivelas de ferro, de esboroados instrumentos científicos e de cartas obsoletas e há muito abandonadas. Tinha a cabeça inclinada sobre as mãos e lia atentamente, com um ardente olhar inquieto, um papel que tomei por uma carta de comando e que, em qualquer caso, apresentava a assinatura de um monarca. Murmurava de si para si, em voz baixa e rabugenta, como fazia o primeiro marinheiro que eu vira no porão, quaisquer sílabas de uma língua estrangeira, e, embora falasse mesmo junto de mim, a sua voz parecia chegar-me aos ouvidos vinda de uma milha de distância.

    O navio e todos os que nele seguem estão imbuídos do espírito de Antanho. A tripulação desliza para um lado e para outro como fantasmas de séculos enterrados; os seus olhares têm uma expressão ansiosa e intranquila; e quando os seus dedos, à minha passagem, caem sob o brilho cru das lanternas de combate, sinto o que nunca antes senti, embora toda a vida tenha negociado em antiguidades e me tenha impregnado das sombras das colunas caídas de Balbec, Tadmor, e Persépolis, até a minha própria alma se converter numa ruína.

    Quando olho em redor envergonho-me das minhas apreensões iniciais. Se tremi ante a tempestade que até agora nos acompanhou, não deveria ficar horrorizado perante a adversidade do vendo e do oceano, que as palavras tornado e simum se tornam banais e ineficazes para descrever? Tudo o que se encontra na imediata proximidade do navio é a escuridão da noite eterna e um caos de água sem espuma; mas, cerca de uma légua para um e outro bordo, podem ver-se, indistintamente e de quando em quando, enormes baluartes de gelo, que se erguem ao longe contra o céu desolado, semelhantes às muralhas do universo.

    Conforme imaginei, prova-se que o navio está sob a ação de uma corrente, se é que assim se pode apelidar uma maré que, gemendo e uivando através da brancura do gelo, troveja para o sul com uma velocidade semelhante à impetuosa precipitação de uma catarata.

    Creio ser totalmente impossível transmitir o horror das minhas sensações; porém, a curiosidade de penetrar os mistérios destas horríveis regiões prevalece mesmo sobre o meu desespero e reconcilia-me com o aspecto mais hediondo da morte. Torna-se evidente que corremos ao encontro de qualquer revelação emocionante: algum segredo que nunca será transmitido, descoberta é o termo da vida. Talvez esta corrente nos leve ao próprio Pólo Sul. Devo considerar que esta suposição, aparentemente tão estranha, tem todas as probabilidades de estar correta.

    A tripulação percorre o convés com passo inquieto e trêmulo; mas há na sua atitude uma expressão que é mais da ânsia da esperança do que da apatia do desespero.

    Entretanto, temos ainda o vento na popa e, como navegamos com imenso pano, o navio é por vezes erguido do mar em peso. Oh, horror sobre horror! O gelo abre-se simultaneamente à direita e à esquerda e começamos a rodopiar vertiginosamente em imensos círculos concêntricos, em torno de um gigantesco anfiteatro, de paredes cuja altura se perde na escuridão e na distância. Mas pouco tempo me restará para ponderar sobre o meu destino: os círculos estreitam rapidamente… mergulhamos loucamente nas garras do turbilhão… e, por entre o rugir, o bramir e o ribombar do oceano e da tempestade, o navio começa a estremecer e – meu Deus! – e… a afundar. (3)

    Edgar Allan Poe

    Notas:

    1. Embarcação oriental armada de velas latinas e normalmente de dois mastros. (N. do T.)

    2. Monstro marinho lendário das costas escandinavas. (N. do T.)

    3. O Manuscrito encontrado numa garrafa foi publicado pela primeira vez em 1831, e só muitos anos mais tarde tomei conhecimento das cartas de Mercator, nas quais o oceano é representado a precipitar-se, por quatro embocaduras, no Abismo Polar (do Norte), para ser absorvido pelas entranhas da terra, sendo o próprio pólo representado por um rochedo negro que se ergue a uma altura prodigiosa. (N. do A.)

    Marquês de Sade | O Talião

    Um bom burguês da picardia, talvez descendente de um desses ilustres trovadores das margens do Oise ou do Somme, e cuja vida entorpecida, acabara de ser retirada às trevas havia dez ou doze anos por um grande escritor do século; um bom e honesto burguês, eu dizia, habitava a cidade de Saint-Quentin, tão célebre pelos grandes homens que deu à literatura, e o fazia honradamente, ele, a mulher e uma prima em terceiro grau, religiosa em um convento dessa cidade. A prima em terceiro grau era uma moreninha de olhos vivos, rosto bonito e olhar leviano, nariz arrebitado e cintura esbelta; estava ela aflita aos vinte e dois anos e religiosa havia quatro; irmã Petronille era seu nome; tinha, além disso, bela voz, e muito mais temperamento que religião.

    Quanto ao Sr. Esclaponville – assim se chamava nosso burguês – era ele um gorducho bom e alegre, de mais ou menos vinte e oito anos, amando mormente a prima mas nem tanto a Sra. Esclaponville, pois que já fazia dez anos que com ela dormia e um hábito de dez anos é bem prejudicial ao fogo do himeneu. A Sra. Esclaponville – pois é preciso pintar, por quem passaríamos se não pintássemos num século em que só se precisa de quadros, em que nem mesmo uma tragédia seria aceita se os negociantes de telas não encontrassem nela ao menos seis temas retratados – a Sra. Esclaponville, eu dizia, era uma loura algo insípida, porém branquíssima, com bonitos olhos, bem gordinha, e com essas grandes bochechas comumente denominadas no mundo de bom gozo.

    Até o presente momento, a Sra. Esclaponville ignorava que existisse um modo de se vingar de um esposo infiel; casta como sua mãe, que vivera oitenta e três anos com o mesmo homem sem o trair, ainda era bastante ingênua, muito cheia de candura para sequer suspeitar desse crime horrendo que os casuístas denominaram adultério, e que os hedonistas que tudo edulcoram, chamaram simplesmente galanteria; mas uma mulher enganada logo recebe de seu ressentimento conselhos de vingança, e como ninguém gosta de ser ludibriado, nada há que não faça, tão logo seja possível, para não ser motivo de censura. A Sra. Esclaponville percebeu, enfim, que seu caro esposo visitava muito amiúde a prima em terceiro grau: o demônio do ciúme apodera-se de sua alma, ela espreita, informa-se e acaba por descobrir e poucas coisas podem ser constatadas em Saint-Quentin como o romance de seu esposo com a irmã Petronille. Segura de seu ato, a Sra. Esclaponville declara enfim a seu marido que a conduta que ele segue trespassa-lhe a alma, que, por seu próprio comportamento, não merecia tais atitudes, e suplica-lhe que abandone seus erros.

    – Meus erros – responde fleumático o esposo ignoras, portanto, que me salvo, minha cara amiga, ao dormir com minha prima religiosa? – Purifica-se a alma em tão santo romance; trata-se de uma identificação com o Ser supremo; é incorporar em si o Espírito Santo: não há nenhum pecado, minha cara, quando estão envolvidas pessoas consagradas a Deus; elas depuram tudo o que se faz com elas e visitá-las, em suma, é abrir caminho à beatitude celeste.

    A Sra. Esclaponville, bem descontente com o insucesso da repreensão, não diz palavra, mas em seu íntimo jura encontrar recursos para tornar sua eloqüência mais persuasiva… Nisso tudo, diabo é que as mulheres têm um meio sempre à disposição: por menos bonitas, basta que se manifestem para que acorram vingadores de toda parte.

    Havia na cidade certo vigário de paróquia denominado abade du Bosquet, grande folgazão de uns trinta anos, cortejando todas as mulheres e fazendo da testa de todos os esposos de Saint-Quentin, verdadeira floresta. A Sra. Esclaponville fez contato com o vigário; insensivelmente, o vigário também fez contato com a Sra. Esclaponville, e os dois acabaram por se conhecer enfim de modo tão completo que teriam podido pintar-se mutuamente dos pés à cabeça sem que fosse possível se equivocarem quanto ao corpo. Ao cabo de um mês, todos vieram felicitar o pobre Esclaponville, que se gabava de ser o único a escapar aos temíveis galanteios do vigário, e de que, em Saint-Quentin, era ela a única fronte que esse patife ainda não maculara.

    – Isso não pode ser – diz Esclaponville aos que lhe falavam -, minha mulher é casta como uma Lucrécia; poderiam me dizer cem vezes, que eu não acreditaria.

    – Vem, pois – diz-lhe um de seus amigos -, vem que eu te convenço por meio de teus próprios olhos, e veremos em seguida se duvidarás.

    Esclaponville deixa-se levar, e seu amigo o conduz a meia légua da cidade, num local solitário onde o Somme, estreitado nas margens entre duas sebes frescas e cobertas de flores, oferece agradável banho aos habitantes da cidade; porém, como o encontro houvesse sido marcado numa hora em que normalmente as pessoas não se banham, nosso pobre marido tem a tristeza de ver chegar, um após o outro, sua honesta mulher e seu rival, sem que ninguém os possa interromper.

    – Pois bem – diz o amigo a Esclaponville sentes coceira na testa?

    – Ainda não – diz o burguês, esfregando-a contudo, é possível que, involuntariamente, ela venha até aqui para se confessar.

    – Permaneçamos, pois, até o desfecho, – diz o amigo…

    Não demorou muito: mal havia chegado à deliciosa sombra da sebe olente, o abade du Bosquet desabotoa tudo o que impede as apalpadelas voluptuosas com que sonha, e põe-se no dever de trabalhar santamente para reunir, é possível que pela trigésima vez, o bom e honesto Esclaponville aos outros esposos da cidade.

    – Pois bem, acreditas agora? – Diz o amigo.

    – Retornemos – diz asperamente Esclaponville tendo sido obrigado a acreditar, eu bem poderia matar esse maldito padre, e acabariam fazendo com que eu pagasse mais do que ele vale; retomemos, meu amigo, e guarda segredo, eu te peço.

    Esclaponville torna a casa todo confuso, e, pouco depois, sua benigna esposa vem se apresentar para jantar ao lado de tão casta pessoa.

    – Um momento, queridinha – diz o burguês furioso – desde minha infância jurei a meu pai nunca jantar com putas.

    – Com putas- responde complacentemente a Sra. Esclaponville -, meu amigo, esse comentário me surpreende; que motivo tens para tal censura?

    – Como, sem-vergonha, que motivo tenho para te censurar? Que foste fazer esta tarde no banho com o nosso vigário?

    – Oh, meu Deus – responde a doce mulher -, é apenas isso, meu filho? É apenas isso que tens a me dizer?

    – Como, por Deus, é apenas isso…

    – Mas, meu amigo, eu segui teus conselhos; não me dissestes que nada se arrisca quando se dorme com pessoas da Igreja? Que depuramos nossa alma em tão santo romance? Que tal ato equivalia a identificar-se ao Ser supremo, fazer entrar o Espírito Santo em si, e abrir caminho, em resumo, à beatitude celeste… Pois bem, meu filho, só fiz o que me disseste; sou, portanto, uma santa, não uma meretriz! Ah! Respondo-te que se a alguma dessas boas almas de Deus é dado um meio de abrir caminho, como disseste, à beatitude celeste, esse meio é certamente o Sr. vigário, pois nunca vi uma chave tão grande!

    Marquês de Sade | O Professor Filósofo

    De todas as ciências que se inculca na cabeça de uma criança quando se trabalha em sua educação, os mistérios do cristianismo, ainda que uma das mais sublimes matérias dessa educação, sem dúvida não são, entretanto, aquelas que se introjetam com mais facilidade no seu jovem espírito. Persuadir, por exemplo, um jovem de catorze ou quinze anos de que Deus pai e Deus filho são apenas um, de que o filho é consubstancial com respeito ao pai e que o pai o é com respeito ao filho, etc, tudo isso, por mais necessário à felicidade da vida, é, contudo, mais difícil de fazer entender do que a álgebra, e quando queremos obter êxito, somos obrigados a empregar certos procedimentos físicos, certas explicações concretas que, por mais que desproporcionais, facultam, todavia, a um jovem, compreensão do objeto misterioso.

    Ninguém estava mais profundamente afeito a esse método do que o abade Du Parquet, preceptor do jovem conde de Nerceuil, de mais ou menos quinze anos e com o mais belo rosto que é possível ver.

    – Senhor abade, – dizia diariamente o pequeno conde a seu professor – na verdade, a consubstanciação é algo que está além das minhas forças; é-me absolutamente impossível compreender que duas pessoas possam formar uma só: explicai-me esse mistério, rogo-vos, ou pelo menos colocai-o a meu alcance.

    O honesto abade, orgulhoso de obter êxito em sua educação, contente de poder proporcionar ao aluno tudo o que poderia fazer dele, um dia, uma pessoa de bem, imaginou um meio bastante agradável de dirimir as dificuldades que embaraçavam o conde, e esse meio, tomado à natureza, devia necessariamente surtir efeito. Mandou que buscassem em sua casa uma jovem de treze a catorze anos, e, tendo instruído bem a mimosa, fez com que se unisse a seu jovem aluno.

    – Pois bem, – disse-lhe o abade – agora, meu amigo, concebas o mistério da consubstanciação: compreendes com menos dificuldade que é possível que duas pessoas constituam uma só?

    – Oh! meu Deus, sim, senhor abade, – diz o encantador energúmeno – agora compreendo tudo com uma facilidade surpreendente; não me admira esse mistério constituir, segundo se diz, toda a alegria das pessoas celestiais, pois é bem agradável quando se é dois a divertir-se em fazer um só.

    Dias depois, o pequeno conde pediu ao professor que lhe desse outra aula, porque, conforme afirmava, algo havia ainda "no mistério" que ele não compreendia muito bem, e que só poderia ser explicado celebrando-o uma vez mais, assim como já o fizera. O complacente abade, a quem tal cena diverte tanto quanto a seu aluno, manda trazer de volta a jovem, e a lição recomeça, mas desta vez, o abade particularmente emocionado com a deliciosa visão que lhe apresentava o belo pequeno de Nerceuil consubstanciando-se com sua companheira, não pôde evitar colocar-se como o terceiro na explicação da parábola evangélica, e as belezas por que suas mãos haviam de deslizar para tanto acabaram inflamando-o totalmente.

    – Parece-me que vai demasiado rápido, – diz Du Parquet, agarrando os quadris do pequeno conde muita elasticidade nos movimentos, de onde resulta que a conjunção, não sendo mais tão íntima, apresenta bem menos a imagem do mistério que se procura aqui demonstrar… Se fixássemos, sim… dessa maneira, diz o velhaco, devolvendo a seu aluno o que este empresta à jovem.

    – Ah! Oh! meu Deus, o senhor me faz mal – diz o jovem – mas essa cerimônia parece-me inútil; o que ela me acrescenta com relação ao mistério?

    – Por Deus! – diz o abade, balbuciando de prazer – não vês, caro amigo, que te ensino tudo ao mesmo tempo? É a trindade, meu filho… É a trindade que hoje te explico; mais cinco ou seis lições iguais a esta e serás doutor na Sorbornne.

    Edgar Allan Poe | Pequena Conversa com uma Múmia

    O banquete da noite precedente me abalara um tanto os nervos. Estava com uma forte dor de cabeça e sentia-me desesperadamente sonolento. Em vez de sair, portanto, para passar a noite fora, como tencionava, ocorreu-me que o que melhor poderia fazer, após saborear uma pequena ceia, era meter-me logo na cama.

    Uma ceia, leve, sem dúvida. Gosto imensamente de queijo derretido com cerveja e torrada quente. Mais de uma libra de uma vez, porém, pode nem sempre ser aconselhável. Entretanto, não pode haver objeção material a duas. E realmente, entre duas e três, há apenas uma unidade de diferença. Arrisquei-me, talvez, a quatro. Minha mulher afirma que foram cinco ? mas, certamente, confundiu duas coisas bem distintas. O número abstrato, cinco, estou disposto a admiti-lo; mas, concretamente, refere-se a garrafas de cerveja preta, sem as quais, a modo de tempero, aquele manjar deve ser evitado.

    Tendo dessa forma concluído uma refeição frugal e colocado na cabeça meu barrete de dormir, com a suave esperança de gozar dele, até o meio-dia seguinte, repousei a cabeça no travesseiro e, graças a uma excelente consciência, mergulhei sem demora no mais profundo sono.

    Mas quando teve a humanidade realizadas as suas esperanças? Não completara ainda meu terceiro ronco, quando a campainha da porta da rua começou a tocar violentamente e, depois, impacientes pancadas com a aldrava me despertaram incontinenti. Um minuto depois, e enquanto ainda esfregava os olhos, meteu-me minha mulher diante do nariz um bilhete, de meu velho amigo, o Dr. Ponnonner.

    “Largue tudo imediatamente, meu caro e bom amigo, logo que receba este. Venha participar de nossa alegria. Afinal, depois de longa e perseverante diplomacia, obtive o consentimento dos diretores do Museu da Cidade, para examinar a Múmia. (Você sabe a que múmia me refiro ). Tenho permissão de desenfaixá-la e abri-la, se for preciso. Estarão presentes apenas poucos amigos ? você é um deles ? está claro. A Múmia acha-se agora em minha casa e começaremos a desenrolá-la, às onze horas da noite.

    Sempre seu

    Ponnonner”.

    Ao chegar à assinatura de “Ponnonner”, senti que já me achava tão desperto quanto um homem necessita estar. Saltei da cama, num estado de êxtase, derrubando tudo quanto se encontrava em meu caminho; vesti-me com uma rapidez verdadeiramente incrível, e dirigi-me, a toda pressa, para a casa do doutor.

    Ali encontrei reunido um grupo bem ansioso. Aguardavam minha chegada, com grande impaciência. A Múmia estava estendida sobre a mesa de jantar, e logo que entrei o exame dela foi começado.

    Era uma das múmias trazidas, muitos anos atrás, pelo Capitão Artur Sabrestash, primo de Ponnonner, de um túmulo perto de Eleithias, nas montanhas da Líbia, a grande distância de Tebas, às margens do Nilo. As grutas nesse lugar, embora menos magníficas que os sepulcros de Tebas, despertam mais interesse, pelo fato de oferecerem maior número de ilustrações sobre a vida privada dos egípcios. A sala, donde fora retirado o nosso exemplar, era, dizia-se, riquíssima de tais ilustrações, estando as paredes inteiramente recobertas de pinturas a fresco e de baixos-relevos, enquanto estátuas, vasos e mosaicos de magníficos desenhos, indicavam a valiosa fortuna dos mortos.

    A preciosidade fora depositada no museu, exatamente nas mesmas condições em que o Capitão Sabrestash a havia descoberto, isto é, o sarcófago estava intacto. Durante oito anos, assim permanecera, exposto apenas, externamente, à curiosidade pública. Tínhamos pois agora a Múmia completa à nossa disposição; e para aqueles que sabem quão raramente chegam intactas às nossas plagas as antigüidades, torna-se evidente, logo, que possuíamos razões de sobra, para congratularmo-nos por nossa boa sorte.

    Aproximando-me da mesa, vi sobre ela, uma grande caixa, ou estojo, de quase sete pés de comprimento e talvez com três pés de largura, por dois e meio de profundidade. Era oblonga, mas sem forma de ataúde. Julgamos a princípio que o material empregado fora a madeira do alcômoro, contudo, logo ao cortá-lo, verificamos que era papelão, ou mais propriamente, papel comprimido, feito de papiro. Estava densamente ornamentada de pinturas, representando cenas funerárias e outros assuntos fúnebres, entre os quais serpeavam, nas mais variadas posições, numerosas séries de caracteres hieróglifos, significando, sem dúvida, o nome do falecido. Por felicidade, fazia parte do nosso grupo, o Sr. Gliddon, que não teve dificuldade em traduzir os caracteres, simplesmente fonéticos e representando a palavra Allamistakeo.

    Não foi sem esforço que conseguimos abrir a caixa, sem danificá-la, mas tendo finalmente conseguido o que desejávamos, chegamos a uma segunda, em forma de ataúde, e de tamanho consideravelmente menor, que o da de fora, mas, semelhante a ela, exatamente, sob todos os aspectos. O intervalo entre as duas estava preenchido de resina que havia, até certo ponto, apagado as cores da caixa interna.

    Ao abrir esta última (trabalho que executamos com bastante felicidade) demos com uma terceira caixa, também em forma de ataúde, e não se diferenciando da segunda em nada de particular a não ser no material de que era feita, de cedro, e ainda exalava o odor característico e altamente aromático dessa madeira. Entre a segunda a terceira e caixa, não havia intervalo, estando uma encerrada ajustadamente dentro da outra.

    Removendo a terceira caixa, descobrimos o próprio corpo, que tiramos para fora. Esperávamos encontrá-lo, como de costume, enrolado em numerosas faixas, ou ligaduras de linho; mas, em lugar destas, encontramos uma espécie de bainha, feita de papiro, e revestida duma camada de gesso, densamente dourada e pintada. As pinturas representavam assuntos relativos a vários supostos deveres da alma, e sua apresentação a diferentes divindades, com numerosas figuras humanas idênticas, intentando representar, bem provavelmente, retratos das pessoas embalsamadas. Estendendo-se da cabeça aos pés, havia uma inscrição colunar ou perpendicular, em hieróglifos fonéticos, dando de novo seu nome e títulos de seus parentes.

    Em volta do pescoço, assim desembainhado, havia um colar de contas coloridas e colocadas de modo a formar imagens de divindades, do escaravelho, etc., com o globo alado. Na parte mais delgada da cintura, havia um colar semelhante a um cinturão.

    Retirando o papiro, encontramos a carne em excelente estado de preservação, sem nenhum odor perceptível. A cor era avermelhada. A pele rija, macia e lustrosa. Os dentes e os cabelos achavam-se em boas condições. Os olhos (parecia), tinham sido arrancados e substituídos por outros de vidro, muito bonitos e imitando perfeitamente os naturais, cem exceção da fixidez do olhar, um tanto acentuada. Os dedos e as unhas estavam brilhantemente dourados.

    O Sr. Gliddon foi de opinião, em face do vermelho da epiderme, que o embalsamento se efetuara, totalmente, por meio de asfalto; mas tendo raspado a superfície, com um instrumento de aço, e lançado ao fogo um pouco de pó, assim obtido, o odor de cânfora e de outras gomas aromáticas se tornou sensível.

    Rebuscamos bem atentamente o cadáver, para encontrar as aberturas usuais, pelas quais são extraídas as entranhas, mas, com surpresa nossa, nenhuma descobrimos. Nenhum dos presentes, nessa ocasião, sabia ainda que não são raras de encontrar múmias inteiras, ou não cortadas. O cérebro era habitualmente retirado pelo nariz; os intestinos, por incisão ao lado; o corpo era em seguida, raspado, lavado e salgado; depois deixavam-no assim, durante várias semanas, quando começavam a operação de embalsamamento, propriamente dita.

    Como não fosse possível encontrar nenhum sinal de abertura, preparava o Dr. Ponnonner, os instrumentos para a dissecação, quando observei, então, que já passava das duas horas. Por esse motivo todos concordaram em deixar para depois o exame inter

    no, para a noite seguinte e já nos dispúnhamos a separar-nos, quando alguém sugeriu uma ou duas experiências com a pilha de Volta.

    A aplicação da eletricidade a uma múmia velha de três ou quatro mil anos, pelo menos, era uma idéia se não bastante sensata, contudo suficientemente original e todos a acolhemos sem protesto. Com quase um décimo de seriedade e nove décimos de brincadeiras, dispusemos uma bateria no gabinete do Doutor e para lá levamos o egípcio.

    Só depois do muito trabalho, foi que conseguimos pôr a nu algumas partes do músculo temporal, que se mostrou com menos rigidez pétrea, do que outras parte do corpo, mas que, como sem dúvida prevíramos, não dava indício de suscetibilidade galvânica, quando em contato com o fio.

    Esta primeira experiência, de fato, pareceu decisiva e, com uma cordial risada ao nosso próprio absurdo, estávamos dando boa-noite uns aos outros, quando, casualmente, meus olhes fitaram os da múmia, e ficaram neles cravados de espanto. Meu breve olhar, na verdade, bastara para assegurar-me de que es glóbulos, que todos nós julgávamos de vidro e que, anteriormente, se distinguiam por certa fixidez estranha, estavam agora tão bem recobertos pela pálpebras, que só uma pequena parte da Túnica Albugínea permanecia visível.

    Com um grito, chamei a atenção para e fato, que se tornou logo evidente a todos.

    Não posso dizer que fiquei alarmado, diante do fenômeno, porque, no meu caso, “alarmado” não é bem o termo. É possível, porém, que, sem as cervejas pretas talvez me tivesse sentido um pouco nervoso. Quanto a meus companheiros, não tentaram ocultar o terror alarmante, que deles se apossara. O Dr. Ponnonner causava lástima. O Sr. Gliddon, graças a não sei que processo especial, tornara-se invisível. Creio que o Sr. Silk Buckingham não terá por certo a coragem de negar, que se arrastou de quatro pés para baixo da mesa.

    Depois do primeiro choque de espanto, porém, resolvemos, como coisa natural, tentar, imediatamente, nova experiência. Nossas operações se dirigiram agora para o artelho do pé direito.

    Fizemos uma incisão por cima da parte exterior do osso sesamoideum pollicis pedix e assim chegamos à raiz do músculo obductor.

    Reajustando a bateria, aplicamos então o fluido aos nervos expostos, quando, com um movimento de excessiva vivacidade, a Múmia, primeiro levantou e joelho direito, a ponto de pô-lo quase em contato com o abdômen, e depois, endireitando com inconcebível força, acertou um pontapé no doutor Ponnonner, tendo, com efeito, lançado este cavalheiro, como o dardo duma catapulta, pela janela lá embaixo na rua. Precipitamo-nos, en masse, para ir buscar os restos despedaçados da vítima, mas tivemos a felicidade de encontrá-la na escada, subindo numa pressa inconcebível, repleta da mais ardente filosofia e mais do que nunca convencida da necessidade de prosseguir nossa experiência com vigor e com zelo.

    Foi a conselho seu, portanto, que fizemos, sem demora, uma profunda incisão, na ponta do nariz do paciente, enquanto o próprio doutor deitando mãos fortes sobre ele, punha-o em vibrante contato com o fio. Moral e fisicamente, figurativa e literalmente, o efeito foi elétrico. Em primeiro lugar, o cadáver abriu os olhos, e piscou com bastante rapidez, durante alguns minutos, como o faz o Sr. Barnus na pantomima; em segundo lugar, espirrou; em terceiro, sentou-se; Em quarto, agitou o punho diante do rosto do Dr. Ponnonner; em quinto, voltando-se para os Srs. Gliddon e Buckinghan, dirigiu-se-lhes, no mais puro egípcio, da seguinte maneira:

    ? Devo dizer-vos, cavalheiros, que estou tão surpreso quanto mortificado pela vossa conduta. Do Dr. Ponnonner, nada de melhor se poderia esperar. É um pobre toleirão, que nada sabe de nada. Tenho pena dele e perdôo-lhe. Mas vós, Sr. Gliddon, e vós Silk, que viajastes pelo Egito, e lá residistes, a ponto de poder crer que lá houvésseis estado desde o berço ? vós, digo eu, que tanto vivestes entre nós a ponto de falardes o egípcio tão bem, penso, como escreveis vossa língua materna ? vós, a quem sempre fui levado a olhar, como o amigo fiel das múmias ? realmente, esperava de vós uma conduta mais cavalheiresca. Que devo pensar de vossa atitude tranqüila, vendo-me assim tão estupidamente tratado? Que devo supor de vós, consentindo que Fulano, Sicrano e Beltrano me arranquem dos meus caixões, tirem-me as roupas, neste clima miseravelmente frio?

    Sob que aspecto (para acabar com isto), deve encarar o fato de estardes a ajudar e incitar esse miserável velhaco do Dr. Ponnonner a puxar-me o nariz?

    Há de supor-se, sem dúvida, que, ao ouvir tal discurso, naquelas circunstâncias, todos nós corremos para a porta, ou caímos em violentos ataques histéricos ou mesmo desmaiamos todos. Uma destas três coisas, digo eu, era de esperar. De fato, cada uma dessas três maneiras de proceder poderia ter sido seguida. E, palavra de honra, não posso compreender como, ou por que foi, que não fizemos nem uma coisa nem outra.

    Mas talvez, a verdadeira razão esteja no espírito deste tempo, que procede totalmente de acordo com a regra dos contrários, e é agora usualmente admitida como solução de todos os paradoxos e impossibilidades. Ou talvez, quem sabe, foi somente o ar excessivamente natural e familiar da Múmia, que destituía suas palavras de seu aspecto terrível. Seja o que for, os fatos são claros, e nenhum dos presentes demonstrou qualquer medo particular, ou pareceu acreditar que se houvesse passado qualquer coisa de especialmente irregular.

    Quanto a mim, achava-me convencido de que tudo aquilo estava direito e simplesmente me coloquei do lado, fora do alcance do punho da múmia. O Dr. Ponnonner meteu as mãos nos bolsos das calças, fitou diretamente a múmia e ficou excessivamente vermelho.

    O Sr. Gliddon cofiava suas suíças e ajeitava o colarinho da camisa. O Sr. Buckingham baixou a cabeça e meteu o polegar direito no canto esquerdo da boca.

    O egípcio olhou-o, com expressão severa, durante alguns minutos, e disse, por fim, com escárnio:

    ? Por que não fala, Sr. Buckinghan? Ouviu ou não e que lhe perguntei? Tire o polegar da boca!

    O Sr. Buckingham, em conseqüência, teve um leve sobressalto, tirou o polegar direito do canto esquerdo da boca e, a título de indenização, inseriu o polegar esquerdo, no canto esquerdo da abertura acima mencionada.

    Não tendo conseguido arrancar uma resposta do Sr. Buckingham, a Múmia se voltou, de mau humor, para o Sr. Gliddon e, em tom peremptório, perguntou, em termos gerais, o que todos nós queríamos.

    O Sr. Gliddon depois de grande demora, respondeu em termos fonéticos; e, não fosse a deficiência de caracteres hieroglíficos nas tipografias americanas, grande prazer me seria dado, em transcrever aqui, no original, todo seu excelente discurso.

    Aproveito a ocasião para observar que toda a conversa subseqüente, em que a Múmia tomou parte, foi travada em egípcio primitivo, por intermédio (pelo menos no que se refere a mim e aos outros membros não viajados do grupo), dos Srs. Gliddon e Buckingham, como intérpretes.

    Esses cavalheiros falavam a língua materna da Múmia com inimitável fluência e graça; mas não posso deixar de observar que (devido, sem dúvida, à introdução de imagens inteiramente modernas e, como é natural, inteiramente novas para o estranho) os dois exploradores foram, por vezes, forçados ao emprego de formas visíveis, para traduzir algum significado especial.

    Em dado momento, por exemplo, o Sr. Gliddon não pode fazer o egípcio compreender a palavra “política”, enquanto não esboçou sobre a parede, com um pedaço de carvão, um homenzinho de nariz cônico, cotovelos esburacados, de pé sobre um cepo, com a perna esquerda lançada para trás, o braço direito atirado para a frente, o punho fechado, os olhos girando pelo céu e a boca aberta, num ângulo de noventa graus. De modo bem igual, o Sr. Buckingham não conseguiria explicar a idéia absolutamente moderna de “whig”, sem que (a

    uma sugestão do Dr. Ponnonner), empalidecendo, tirasse o chinó.

    Facilmente se compreenderia que o discurso do Sr. Gliddon versou principalmente sobre os vastos benefícios, extraídos para a ciência, do desempacotamento e do escavamento, das múmias, desculpando-se, desse modo, por qualquer incômodo, que pudesse ter-lhe sido causado, pessoalmente, à Múmia chamada Allamistakeo; e concluindo com uma simples insinuação (pois mal podia ser considerada mais do que isso) de que, explicados agora esses pequenos pormenores, muito bem se poderia continuar a investigação pretendida. Nesse ponto o Dr. Ponnonner preparou seus instrumentos.

    Relativamente às últimas sugestões do orador, parece que Allamistakeo teve certos escrúpulos de consciência, sobre cuja natureza não fui precisamente informado; manifestou-se, porém, satisfeito com a s desculpas apresentadas e, descendo da mesa, fez volta ao grupo, apertando a mão de todos.

    Quando terminou esta cerimônia, ocupamo-nos, imediatamente, em reparar os danos infligidos ao sujeito pelo escalpelo. Costuramos o ferimento de sua têmpora, pusemos-lhe uma atadura no pé e aplicamos uma polegada quadrada de emplastro preto, na ponta do nariz.

    Observou-se então que o Conde (era esse, parece, o título de Allamistakeo) teve um leve tremor, sem dúvida de frio.

    O Doutor imediatamente encaminhou-se para o seu armário e logo voltou com uma casaca preta, pelo melhor figurino de Jenning, um par de calças de xadrez, azul-celeste, uma camisa de gingão cor de rosa, um colete de brocado com abas, um sobretudo branco, uma bengala de passeio com ganho, um chapéu sem aba, botinas de verniz, luvas de pele de cabrito, cor de palha, um monóculo, um par de suíças e uma gravata cascata. Devido à disparidade de tamanho, entre Conde e o Doutor (sendo a proporção de dois para um), houve certa dificuldade em ajustar esses trajes à pessoa do egípcio: mas quando tudo se arranjou, podia-se dizer que ele estava bem vestido. O Sr. Gliddon lhe deu, portanto, o braço e levou-o a uma confortável cadeira, junto à lareira, enquanto o Doutor tocava imediatamente a campainha e ordenava fossem trazidos mais charutos e vinho.

    A conversa em breve se animou. Muita curiosidade, sem dúvida, foi expressa, a respeito do fato, seu tanto quanto notável, de estar Allarnistakeo ainda vivo.

    ? Eu teria pensado ? disse o Sr. Buckingham ? que já faz muito tempo que o senhor está morto.

    ? Ora! replicou o Conde, bastante espantado. ? Tenho pouco mais de setecentos anos de idade! Meu pai viveu mil e não se achava de modo algum caduco, quando morreu.

    Seguiu-se então uma rápida série de perguntas e cálculos, por meio dos quais se tornou evidente que a antigüidade da Múmia fora erroneamente estimada. Já se haviam passado cinco mil e cinqüenta anos e alguns meses, desde que fora ela depositada nas catacumbas de Eleithias.

    ? Mas minha observação ? continuou o Sr. Buckingham ? não se refere à sua idade, por ocasião do enterro (quero crer de fato, que o senhor é ainda um homem moço) e minha alusão foi à imensidade de tempo durante o qual, segundo sua própria explicação, o senhor tem estado empacotado em asfalto.

    ? Em quê? ? perguntou o Conde.

    ? Em asfalto ? repetiu o Sr. Buckingham.

    ? Ah! sim; tenho uma fraca noção do que o senhor quer dizer; de certo isso poderia dar resultado, mas no meu tempo empregava-se raramente outra coisa que não fosse o bicloreto de mercúrio.

    ? Mas o que especialmente não achamos jeito de compreender ? disse o Dr. Ponnonner ? é como acontece que, tendo morrido e sido enterrado no Egito, há mais de mil anos, esteja o senhor hoje aqui vivo e parecendo tão magnificamente bem.

    ? Se eu estivesse morto, como o senhor diz ? replicou o Conde ? é mais que possível que morto ainda estaria, pois percebo que os senhores estão ainda na infância do galvanismo e não podem realizar com ele o que era coisa comum entre nós, antigamente. Mas o fato é que sofri um ataque de catalepsia e meus melhores amigos acharam que eu estava morto, ou deveria estar. De acordo com isso, embalsamaram-me imediatamente.

    Suponho que os senhores tem conhecimento do principal mestre do processo de embalsamamento.

    ? Bem, não totalmente.

    ? Ah! percebo… deplorável estado de ignorância! Muito bem, não posso entrar em pormenores neste momento, mas é necessário explicar, que embalsamar (propriamente falando), no Egito, era paralisar indefinidamente todas as funções animais sujeitas a este processo. Uso a palavra “animais”, no seu sentido mais lato, como incluindo não só o ser físico, como o ser modal e vital. Repito que o primeiro princípio do embalsamamento consistiu, entre nós. na paralisação imediata e na manutenção perpétua em suspenso, de todas as funções animais, sujeitas ao processo.

    Para ser breve, em qualquer estado em que se encontrasse e indivíduo, no período de embalsamamento, não permaneceria vivo. Ora, como tenho a felicidade de ser do sangue do Escaravelho, fui embalsamado vivo, como os senhores me vêem agora.

    ? O sangue do Escaravelho! ? exclamou o Dr. Ponnonner.

    ? Sim. O Escaravelho era o emblema, ou as “armas” duma distintíssima e pouco numerosa família patrícia. Ser “do sangue do Escaravelho” é apenas ser um dos membros daquela família de que o Escaravelho é o emblema. Estou falando figurativamente.

    ? Mas que tem isso com o fato de estar vivo o senhor?

    ? Ora, é costume geral no Egito, antes de embalsamar um cadáver, extrair-lhe os intestinos e os miolos; só a raça dos Escaravelhos não se conformava com esse costume. Portanto, não tivesse eu sido um Escaravelho, e me haveriam extraído intestinos e miolos, e sem uns e outros é inconveniente viver.

    ? Entendo ? disse o Sr. Buckingham ? e suponho que todas as múmias intactas, que nos têm chegado às mãos, são da raça dos escaravelhos.

    ? Sem dúvida alguma.

    ? Eu pensava. ? disse o Sr. Gliddon, com timidez que o Escaravelho era um dos deuses egípcios.

    ? Um dos egípcios quê? ? perguntou a Múmia, dando um salto.

    ? Deuses! ? repetiu o viajante.

    ? Sr. Gliddon, estou realmente atônito por ouvi-lo falar neste estilo ? disse o Conde, tornando a sentar-se. Nenhuma nação, sobre a face da terra, jamais conheceu senão um único Deus. O Escaravelho, o íbis, etc., eram entre nós (o que outros seres têm sido para outras nações) os símbolos, ou intermediários, através dos quais prestávamos culto ao Criador, demasiado augusto para que dele nos aproximássemos de mais perto.

    Houve aqui uma pausa. Finalmente, reatou-se a conversa pelo Dr. Ponnonner.

    ? Não é impossível, então, pelo que o senhor acaba de explicar ? disse ele ? que entre as catacumbas, perto do Nilo, possam existir outras múmias da tribo do Escaravelho, em condições de vitalidade.

    ? Não pode haver dúvida alguma a respeito ? respondeu o Conde. ? Todos os Escaravelhos embalsamados, acidentalmente, quando ainda vivos, estão vivos. Mesmo alguns dos que foram propositadamente assim embalsamados podem ter sido esquecidos pelos seus executores testamentários e ainda permanecem nos túmulos.

    ? Quer ter a bondade de explicar ? perguntei eu, o que quer o senhor dizer com “propositadamente assim embalsamados”?

    ? Com grande prazer ? respondeu a Múmia, depois de me haver examinado à vontade, através de seu monóculo, pois era a primeira vez que me aventurara a fazer uma pergunta direta.

    ? Com grande prazer ? disse ele. ? A duração habitual da vida de um homem, no meu tempo, era de quase oitocentos anos. Poucos homens morriam, a não ser em virtude do mais extraordinário acidente, antes dos seiscentos anos; poucos viviam mais do que uma década de séculos; mas oitocentos anos eram considerados o termo natural.

    Depois da descoberta do princípio do embalsamamento, como já descrevi aos senhores, ocorreu a nossos filósofos que se poderia satisfazer uma louvável curiosidade e. ao mesmo tempo, fazer avançar os interesses da ciência, vivendo-se es

    se termo natural a prestações.

    Relativamente à ciência histórica, de fato, a experiência demonstrava que algo dessa natureza era indispensável. Tendo por exemplo um historiador atingido a idade de quinhentos anos, escrevia um livro, com grande trabalho, e depois fazia-se embalsamar, com todo o cuidado, deixando instruções a seus executores testamentários pro tempore, para que o fizessem reviver, depois de certo lapso de tempo ? digamos quinhentos ou seiscentos anos. Voltando à vida, ao expirar aquele prazo, encontraria invariavelmente sua grande obra convertida numa espécie de caderno de notas à toa, isto é, uma espécie de arena literária, para as conjecturas antagônicas, enigmas e rixas pessoais de rebanhos inteiros de comentaristas exasperados. Essas conjecturas, etc., que passavam sob o nome de anotações, ou emendas, verificavam-se haver tão completamente envolvido, torturado e sufocado e texto, que o autor era obrigado a sair de lanterna na mão, à busca de seu próprio livro. Ao descobri-lo, nunca merecia o trabalho da busca. Depois de reescrevê-lo, totalmente, cabia ainda, como dever obrigatório do historiador, pôr-se a trabalhar, imediatamente, em corrigir, de acordo com seu saber individual a e a sua experiência, as tradições do dia, concernente à época em que ele havia originalmente vivido. Ora, este processo de recomposição e retificação pessoal, levado a efeito por diferentes sábios, de tempos em tempos, tinha como resultado evitar que nossa história degenerasse em fábula completa.

    Peço-lhe perdão ? disse o Dr. Ponnonner, neste ponto, pousando delicadamente sua mão sobre o braço do egípcio ? peço-lhe perdão, senhor, mas posso ter a liberdade de interrompê-lo um instante?

    Perfeitamente, senhor ? respondeu o Conde, afastando-se um pouco.

    Desejava fazer-lhe simplesmente uma pergunta ? disse o Doutor. ? O senhor se referiu à correção pessoal do historiador, nas tradições relativas à sua própria época. Rogo-lhe que me diga, qual a proporção, em média, de verdade misturada. a essa Cabala?

    A Cabala, como o senhor muito bem definiu, gozava em geral de fama de estar justamente a par dos fatos relatados nas próprias histórias não reescritas, isto é, jamais se viu, em circunstâncias alguma um simples jota em qualquer deles, que não estivesse absoluta e radicalmente errado.

    Mas já que está perfeitamente claro ? continuou o Doutor ? que pelo menos cinco mil anos se passaram, desde que o senhor foi enterrado, tenho como certo que vossos anais daquele período, senão vossas tradições, eram suficientemente explícitos, a respeito daquele tópico de interesse universal, que é a Criação, a qual se realizou, como suponho que é de seu conhecimento, havia apenas dez séculos antes.

    O senhor! ? disse o Conde Allamistakeo.

    O Doutor repetiu suas observações, mas, somente depois de muita explicação adicional, foi que o estrangeiro pôde chegar a compreendê-las. Por mim, respondeu, hesitantemente:

    As idéias que o senhor me apresentou são, confesso, extremamente novas, para mim. No meu tempo, não conheci ninguém que sustentasse fantasia tão singular, como essa de que o universo (ou este mundo, se gostar mais) tivesse uma vez um começo. Lembro-me de que uma vez, uma vez apenas, ouvi algo de remotamente vago, de um homem de muito saber, a respeito da origem da raça humana, e esse homem empregava essa mesma palavra Adão (ou Terra Vermelha), de que o senhor fez uso. Empregava-a, porém, em sentido genérico, com referência à germinação espontânea do limo da terra (da mesma maneira por que são geradas milhares de criaturas dos mais baixos genera), a geração espontânea digo eu, de cinco vastas hordas de homens, simultaneamente brotada em cinco distintas e quase iguais divisões do globo.

    Aqui, todos os presentes encolheram os ombros e um ou dois de nós tocou na fronte, com ar bastante significativo.

    O Sr. Buckingham, depois de lançar ligeiro olhar para o occipício e depois para o sincipício de Allamistakeo, disse o seguinte:

    A longa duração da vida humana no seu tempo, e ainda mais a prática ocasional de passá-la, como o senhor explicou, a prestações, deve ter contribuído, na verdade, bastante poderosamente, para o desenvolvimento geral e acumulação do saber. Suponho, por conseqüência, que devemos atribuir a acentuada inferioridade dos velhos egípcios, em todos os ramos da ciência, quando comparados com os modernos e, mais especialmente, com os ianques, inteiramente à solidez mais considerável do crânio egípcio.

    Confesso novamente ? respondeu o Conde, com bastante mansidão ? que estou um tanto em dificuldade para compreendê-lo; por obséquio, a que ramos de ciência alude o senhor?

    Aqui, todo o grupo, unindo as vozes, pormenorizou prolixamente, as aquisições da frenologia e as maravilhas do magnetismo animal.

    Tendo-os ouvido até o fim, o Conde começou a contar algumas anedotas, que demonstraram terem florescido e fenecido no Egito, há tanto tempo, a ponto de terem sido quase esquecidas, tipo de Gall, Spurheim, de que os processos de Mesmer não passavam realmente de desprezíveis artifícios, quando comparados com os positivos milagres dos sábios tebanos, que criavam piolhos e muitos outros seres dessa espécie.

    Nisto perguntei ao Conde se o seu povo era capaz de calcular eclipses. Ele sorriu, com certo desdém, e disse que era.

    Isto me perturbou um pouco, mas comecei a fazer outras perguntas, a respeito de seu saber astronômico, quando um membro do grupo, que ainda não abrira a boca, cochichou a meu ouvido que, para informação a respeito do assunto, melhor seria que eu consultasse Ptolomeu (quem era esse tal de Ptolomeu?), bem como um tal Plutarco, no capítulo de facie lunae.

    Interroguei depois a Múmia, a respeito de lentes convexas e doutra espécie, e, em geral, acerca da manufatura de vidro. Nas ainda não terminara eu minha pergunta e já o companheiro silencioso, de novo me tocava de mansinho o cotovelo e pedia-me, pelo amor de Deus, que desse uma olhadela em Diodoro Sículo. Quanto ao Conde, perguntou-me simplesmente, a modo de réplica, se nós modernos, possuímos microscópios, que nos permitissem gravar camafeus, no estilo dos egípcios. Enquanto pensava na maneira de responder a esta pergunta, o miúdo Doutor Ponnonner se pôs a falar de maneira verdadeiramente extraordinária.

    Veja a nossa arquitetura! ? exclamou ele, com grande indignação dos dois viajantes que o beliscavam, mas sem resultado.

    Veja ? gritou ele, com entusiasmo ? a Fonte do Jogo de Bola de New York! Ou se o espetáculo é por demais imponente, contemple por um instante o Capitólio, em Washington, D. C.! ? e o bom doutorzinho se pôs a pormenorizar, com toda a prolixidade, as proporções do edifício a que se referia. Explicou que só o pórtico estava adornado de não menos de vinte e quatro colunas, de cinco pés de diâmetro, e dez pés de distância uma das outras.

    O Conde disse que lamentava não poder lembrar-se, justamente naquele momento, das dimensões precisas de qualquer dos principais edifícios da cidade de Aznac, cuja fundação se perdia na noite do Tempo, mas cujas ruínas estavam ainda de pé, na época do seu sepultamento, numa vasta planície arenosa, a oeste de Tebas. Lembrava-se, porém, (a propósito de pórticos) que um havia, pertencente a um palácio inferior, numa espécie de subúrbio chamado Carnac, e formado de cento e quarenta e quatro colunas, de trinta e sete pés de circunferência e distantes umas das outras vinte e cinco pés. Chegava-se do Nilo a esse pórtico, através duma avenida de duas milhas de extensão, formada de esfinges, estátuas e obeliscos, de vinte, de sessenta e de cem pés de altura. O próprio palácio (pelo que podia lembrar) tinha, só numa direção, duas milhas de comprimento e ao todo poderia ter cerca de sete de circuito. Suas paredes estavam todas ricamente pintadas, por dentro e por fora, de hieróglifos. Não pretendia afirmar que mesmo cinqüenta ou sessenta dos Capitólios do Doutor

    pudessem ter sido construídos, dentro daquelas paredes, mas de nenhum modo achava impossível que duzentos ou trezentos deles pudessem ser lá dentro comprimidos, sem muita dificuldade. Aquele palácio de Carnac não passava afinal duma insignificância. Ele (o Conde), porém, não podia em consciência recusar-se a admitir a engenhosidade, a magnificência e a superioridade da Fonte do Jogo da Bola, tal como foi descrita pelo Doutor. Nada de semelhante, era forçado a convir, fora jamais visto no Egito, nem em qualquer outra parte.

    Perguntei então ao Conde qual sua opinião a respeito de nossas estradas de ferro.

    Nada de particular ? respondeu ele.

    Eram um tanto fracas, um tanto mal projetadas e toscamente construídas. Não podiam ser comparadas, por certo, com as estradas vastas, planas, retas e raiadas de ferro, sobre as quais os egípcios transportavam templos inteiros e sólidos obeliscos, de cento e cinqüenta pés de altura. Falei de nossas gigantescas forças mecânicas.

    Concordou que alguma coisa conhecíamos nesse particular, mas indagou quanto teria eu de trabalhar, para levantar as cornijas sobre os dintéis, como do pequeno palácio de Carnac.

    Resolvi não dar por ouvida esta pergunta e perguntei se ele tinha alguma idéia de poços artesianos, mas ergueu simplesmente as sobrancelhas, enquanto o Sr. Gliddon piscava fortemente para mim e dizia, em voz baixa, que fora descoberto um, recentemente, por engenheiros encarregados de canalizar água para o Grande Oásis.

    Mencionei depois nosso aço, mas o estrangeiro levantou o nariz e perguntou-me se nosso aço podia ter executado o duro trabalho de insculpir os obeliscos, realizado totalmente com instrumentos cortantes de cobre.

    Isto nos desconcertou tanto que achamos prudente mudar nosso ataque para a metafísica. Mandamos buscar um exemplar do livro, chamado o Relógio de Sol, e lemos um capítulo ou dois, a respeito dum assunto não bastante claro, mas que os bostonianos chamam de Grande Movimento do Progresso.

    O Conde disse simplesmente que Grandes Movimentos eram coisas excessivamente comuns no seu tempo e quanto ao Progresso, foi, em certo tempo, uma completa calamidade, porém jamais progredira.

    Falamos então da grande beleza e da importância da Democracia e muito nos esforçamos para fazer bem compreender ao Conde as vantagens de que gozávamos em viver num país onde havia sufrágio ad libitum, e não havia rei. Ele escutou com todo interesse e de fato mostrou-se não pouco divertido. Quando acabamos, disse ele que, há muitíssimo tempo, ocorrera algo bem semelhante. Treze províncias egípcias resolveram tornar-se imediatamente livres e dar assim um magnífico exemplo ao resto da humanidade. Reuniram-se seus sábios e cozinharam a mais engenhosa constituição, que é possível conceber-se. Durante algum tempo, as coisas correram admiravelmente bem, somente que seu costume de ufanar-se era prodigioso. A coisa acabou, porém, com a consolidação dos treze estados, com mais quinze ou vinte outros, no mais odioso e insuportável despotismo de que jamais se ouviu falar na superfície da Terra.

    Perguntei o nome do tirano usurpador.

    Tanto quanto podia lembrar-se, era POPULAÇA.

    Não sabendo que dizer a isso, ergui a voz e deplorei que os egípcios não conhecessem o vapor.

    O Conde olhou para mim com bastante espanto, mas não deu resposta. O cavalheiro silencioso, porém, deu-me uma violenta cotovelada nas costelas dizendo-me que eu já me havia suficientemente comprometido duma vez, e perguntou se eu era tão maluco, realmente, para não saber que a moderna máquina a vapor deriva da invenção de Hero, através de Salomão de Caus.

    Estávamos agora em eminente perigo de sermos derrotados, mas nossa boa sorte fez que o Doutor Ponnonner, tendo-se reanimado, voltasse em nosso auxílio e perguntasse se o povo do Egito pretendia seriamente rivalizar com os modernos, em todas as importantíssimas particularidade, do trajo.

    Ouvindo isto, o Conde baixou a vista sobre as alças de suas calças e, depois, pegando a ponta de uma das abas de sua casaca, levou-a até bem perto dos olhos, examinando-a, durante alguns minutos. Deixando-a cair, por fim, sua boca escancarou-se gradualmente, duma orelha à outra, mas não me recordo se ele disse qualquer coisa à guisa de resposta.

    Neste momento, recuperamos nossas energias e o Doutor, aproximando-se da Múmia, com grande dignidade, rogou-lhe que lhe dissesse, com toda a franqueza, e sob sua honra de cavalheiro, se os egípcios tinham compreendido em alguma época, a fabricação, quer das pastilhas de Ponnonner, quer das pílulas de Bandreth.

    Aguardávamos, com profunda ansiedade, uma resposta, mas foi em vão. A resposta não chegava. O egípcio enrubesceu e baixou a cabeça. Jamais houve triunfo mais consumado; jamais derrota alguma foi suportada de tão má vontade. De fato, não podia tolerar o espetáculo da mortificação da pobre Múmia. Peguei do chapéu, cumprimentei-a e despedi-me.

    Ao chegar em casa, já passava das quatro horas e fui imediatamente para a cama. São agora dez horas da manhã. Estou de pé desde as sete, escrevendo estas notas, em benefício da minha família e da humanidade. Quanto à primeira, não mais a verei. Minha mulher é uma víbora. A verdade é que estou nauseado, até o mais íntimo, desta vida e do século dezenove em geral. Estou convencido de que tudo vai de pernas viradas. Além disso, estou ansioso por saber quem será o Presidente, em 2045. Portanto, logo que acabar de barbear-me e de tomar uma xícara de café, irei até a casa de Ponnonner fazer-me embalsamar por uns duzentos anos.

    Edgar Allan Poe

Feature