junho 2019

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    Alberto Moravia | Ao Deus Desconhecido

    Durante aquele inverno, encontrava‑me muitas vezes com Marta, uma enfermeira que conhecera alguns meses antes, no hospital onde estivera internado por causa de certas febres misteriosas, contraídas provavelmente na África, durante uma viagem, na qualidade de convidado especial.

    Pequena, baixinha, com uma cabeça encimada por densos cabelos castanho‑avermelhados encrespados e finos, apartados por uma risca no meio, Marta tinha um rosto redondo de menina. Mas uma menina, digamos, empalidecida e gasta por uma maturidade precoce. Na expressão absorta e preocupada dos grandes olhos negros, no tremor que tantas vezes lhe aflorava aos cantos da boca, a idéia da infância mesclava‑se estranhamente com a de sofrimento ou, melhor, de martírio. Último pormenor, tinha uma voz um pouco rouca e falava com um sotaque rude, dialetal.

    Mas a Marta não teria me inspirado qualquer forma de curiosidade sentimental se, durante a minha doença, não tivesse mantido comigo uma atitude pelo menos insólita no plano profissional. Em palavras simples, Marta acariciava‑me todas as vezes que arrumava a minha cama ou a ajeitava os cobertores, ou quando entrava em contacto com o meu corpo por ocasião das minhas necessidades naturais.

    Eram carícias fugitivas e extremamente breves, sempre entre as virilhas, como arrancadas em segredo que as tornava furtivas e incenas. Mas eram, ao mesmo tempo, carícias de certo modo impessoais, isto é, sentia que não me tinham como alvo, mas apenas uma parte precisa do meu corpo, e nada mais. Não recebera nunca um beijo sequer de Marta, e soubera desde sempre que aquilo, ela o teria feito com qualquer outro doente, se para tanto se apresentasse a ocasião.

    No entanto, havia em tudo isto algo de misterioso. Assim, foi mais por curiosidade do que pelo desejo de reatar qualquer relação que, depois de minha saída da clínica, telefonei à Marta, pedindo‑lhe um encontro.

    Ela marcou‑mo imediatamente, mas com uma estranha condição: “Está bem, vamos nos encontrar, mas só porque voce parece ser diferente dos outros e me inspirasconfiança”. Tais palavras pareciam um lugare comum um tanto patético, destinados a salvar a dignidade de Marta; porém, como descobri pouco depois, que era a mais pura verdade.

    O encontro fora marcado em um Café dotado de uma chamada sala interior, situado no mesmo bairro em que morava a Marta. Foi ela quem indicou o local, com a seguinte frase, cujo sentido real não me foi possível compreender: “A sala interior está sempre vazia; assim, vamos poder estar sozinhos”. Confesso que tive a impressão de que, na sombra e no abandono da sala de dentro, Marta talvez fosse recomeçar as suas invulgares incursões pelo meu corpo, à semelhança do que se passara na clínica. 

    Mas mal me sentei à sua frente, num recanto escuro, mudei completamente de ideias. Ela tinha a cabeça lançada para trás, encostada à parede e olhava‑me com desconfiança, enquanto eu lhe explicava que sentia o maior prazer em voltar a vê‑la, a sua presença na clínica ajudara‑me a passar um momento difícil da minha vida. Por fim, a vi sacudir a cabeça, e disse‑me com dureza: “Se veio aqui para tentar recomeçar as coisas como na clínica, é melhor que me diga já, porque não quero perder tempo e vou‑me embora.”

    Não pude deixar de exclamar, quase ingenuamente: “Mas por que na clínica e aqui não?”

    Olhou‑me com certa demora antes de responder. Depois, disse‑me num tom de desdém: “Está se comportando exatamente como todos os outros. E, no entanto, há qualquer coisa em você que me inspira confiança. Por que na clínica e aqui não? Porque me falta aqui a atmosfera da clínica. Aqui, seria para mim uma coisa nojenta.”

    “Mas em que consiste a atmosfera da clínica”

    Ela respondeu com leve impaciência: “A atmosfera da clínica, como posso dizer? Os médicos, as irmãs, o cheiro do desinfetante, os móveis metálicos, o silêncio, a ideia da doença, da cura, da morte. Mas sem irmos muito longe, o fato de o doente estar deitado na cama e coberto pelos lençois, o que o impede de fazer certas coisas, a não ser por debaixo do lençol, é isso que cria imediatamente a atmosfera da clínica.”

    “O lençol? Não entendo.”

    “Apesar de tudo, deve lembrar que aquelas carícias que tanto o impressionavam, nunca as fiz no seu corpo nu, mas sempre por cima do lençol.”

    Agora, a Marta parecia à vontade e falava com toda a liberdade da nossa relação. Eu disse então, sabe‑se lá por que: “o lençol, habitualmente, serve também de mortalha aos cadáveres.”

    “Para mim, não. O lençol, para mim, é a clínica.”

    O que isso quer dizer?”

    “E isso me faz lembrar que sou uma enfermeira, que estou ali para fazer bem ao doente e que não devo ultrapassar certos limites, mais precisamente: os do lençol. Enquanto aqui, nesta saleta de café…

    “Mas foi você quem a indicou.”

    “Sim, porque é perto da minha casa. Talvez você quisesse que eu agora te acariciasse pela abertura das calças por baixo da sua cueca. Que horror!

    Retruquei movido não sabia por que curiosidade experimental: “Você tem que me desculpar. O certo é que estou um pouco apaixonado por você. Vamos ver; quer ir qualquer dia desses na minha casa? Ponho-me na cama, finjo que estou doente, e fico lá embrulhado no lençol.”

    “Mas continua a ser a sua casa e não a clínica.”

    Insisti, tentando ver o que ela desta vez me responderia: “Se você quiser, digo que preciso de alguns exames, e faço com que me internem de novo. Na condição, porém, de que, pelo menos por um instante só, vá até meu quarto.”

    “Você está louco? A que ponto chegou.”

    “Já disse, estou apaixonado por você. Ou melhor, pelo seu vício.”

    Ela respondeu de pronto e com vivacidade: “Mas eu não sou nenhuma viciosa! Gosto de tocar o sexo do doente através do lençol por um motivo que não tem nada com vício.”

    “Que motivo?”

    “Como posso explicar? Digamos que é como que para me certificar com a mão de que, apesar da doença, a vida continua ali, presente, e a postos…”

    “A postos para quê?”

    Ela disse então, como se estivesse falando sozinha: “Não acredita. Mas as minhas carícias são como um pedido. E mal sinto a resposta, quer dizer, logo que sinto que a carícia produziu o efeito esperado, não insisto mais. Nunca prolonguei a carícia até a ejaculação do doente. Onde está o vício em tudo isto?”

    O meu pensamento girava em torno daquilo que ela me dizia como se andasse a volta de qualquer coisa obscura e indecifrável, mas de cuja realidade não fosse certo duvidar. Por fim, disse. “Portanto, o quadro é esse e não pode ser senão esse. A irmã, por um lado, com a cruz no peito; o médico, do outro lado, com o termómetro; e, no meio, embrulhado no lençol, o doente a quem, às escondidas, você roça, toca, acaricia por um momento o sexo. Não é este o quadro”

    “Sim. O quadro, como você chama, é esse.”

    “É esse… roçar basta para você?”

    “Evidentemente, e nunca fiz nada mais do que isso”

    Depois deste e outros discursos semelhantes, ficamos como se costuma dizer, como “bons amigos” e com a promessa recíproca de voltarmos a nos ver.

    De fato, voltámo‑nos a nos ver muitas vezes, sempre naquele mesmo café. Não conseguia, porém, explicar‑me porque é que fazia o que fazia; preferia contar‑me histórias em que aconteciam sempre as mesmas coisas. Via‑se que lhe dava prazer falar‑me disso, não tanto por vaidade como, talvez, por tentar assim compreender melhor ela própria porque se comportava daquele modo.

    Eis, como exemplo, uma de suas histórias.

    “Ontem, tinha ido pôr o compadre em um doente grave. Um homem de meia idade, negociante ou lojista, rude, calvo, com um bigode e um rosto de expressão mesquinha e vulgar. Tem uma mulher, do tipo beata, que está sempre ao pé da cama dele a rezar passando as contas de um rosário em grande velocidade.

    Levantei seus cobertores, pus o compadre por baixo das nádegas magras esperei que defecasse, tirei o compadre, fui despejá‑lo e levá‑lo ao banheiro e depois voltei para arrumar-lhe a cama. Era tarde e a mulher, como de costume estava rezando ao pé da cama. Arrumei as roupas dele; mas, na altura de esticar os cobertores por cima do lençol, com um gesto rápido dei‑lhe um apertão não violento, mas envolvente, apanhando‑lhe o sexo todo, enquanto lhe dizia em voz velada. “Vai ver que se cura depressa”. 

    Ele respondeu de forma alusiva e maliciosa, adequada ao homem vulgar que era. “Se é você quem diz me curo com certeza”. A seguir irritou‑se com a mulher que continuava a rezar, gritando que acabasse com as orações, que eram de mau agouro.

    “E ele de fato se curou?

    “Não, morreu esta noite”

    “Mas como é que você pode fazer isso com um homem desses, tão doente, e depois, ainda por cima, vulgar, mesquinho, repugnante”

    “No local onde eu pus a mão, não era nada disso, garanto. Poderia ser o jovem mais belo de toda a terra.”

    Outra vez, Marta chegou com o rosto perturbado. Disse‑me bruscamente: “esta noite passei um grande susto.”

    “Por quê?”

    “Há um doente que eu acho muito simpático. É um homem novo, deve ter uns trinta anos. De toda a sua pessoa emana uma vitalidade rude e simples, como de um camponês. Tem uma cara grande e sólida, olhos rasgados e risonhos, nariz encurvado, boca sensual. É um atleta, campeão já não sei de que esporte. Foi operado há pouco tempo, tem sofrido muito, embora não se queixe nem diga nada a ninguém. É o mais tranquilo de todos os doentes, nunca diz uma palavra.

    Mantém‑se direito e olha para a televisão, cuja tela está sempre acesa diante da cama dele, mudando a todo o momento de canal. Esta noite, já deviam ter passado das três da madrugada, ele me chamou e fui até ele como de costume com a televisão acesa, no escuro da sala.

    Aproximei-me e ele sussurrou-me com a voz extinta, comum aquelas pessoas que estão com uma dor muito intensa e mal conseguem falar.

    “Por favor, gostaria que me apertasse a mão, me sentiria como se tivesse ao meu lado a minha mãe ou a minha irmã e sofreria bem menos”.

    Não digo nada, estendo‑lhe a mão e ele a aperta com força, estava realmente sofrendo muito, pelo menos a julgar pela forma convulsiva como segurava minha mão.

    Assim, de mãos dadas, ficamos calados, imóveis, olhando para a televisão, onde apareciam os personagens de não sei que filme de gangster”.

    Alguns minutos passaram. Entretanto, senti que ele apertava meus dedos com mais força, como para assinalar a irupção de uma dor mais aguda. De repente, não sei como, imagino‑me impulsivamente a aliviar de qualquer maneira aquele sofrimento, e digo‑lhe em voz baixa. “Talvez, para ajudá-lo a vencer a dor, seja preferível um contato mais íntimo”.

    Ele repetiu “mais íntimo” de maneira insólita, como se interrogasse a si próprio. E eu confirmei, com a voz velada. “Sim, mais íntimo”.

    Ele não disse nada. Tirei a minha mão da sua, introduzi‑a por debaixo dos cobertores, precisamente entre os cobertores e o lençol e pousei-a aberta em seu sexo. Este era da mesma conformação que todo o seu corpo; a palma da minha mão comprimiu um volume túmido semelhante ao de um molho de flores frescas, embrulhadas em celofane. Murmurei: “Não é melhor assim?”, e ele, de dentro do escuro da sala, respondeu que sim. 

    Sempre em silêncio, mas olhando para o visor vibrante de luz, imprimi à palma da mão um lento movimento rotativo, mas nem pesado nem insistente, antes pelo contrário, delicado e leve, e então ‑ sabe que impressão eu tive? “Que por baixo do lençol havia um emaranhado de polvos recém pescados, vivos, ainda a se mexerem, molhados das águas do mar.”

    Não pude, nessa altura, deixar de exclamar: “que estranha sensação!” “era uma impressão de vitalidade e de pureza. Que há de mais puro do que um animal vivo, acabando de sair da profundidade do mar? Não sei se consigo dar a você uma ideia. A impressão era tão forte que não fui capaz de deixar de lhe contar de novo: “É bom, não é?” Ele não respondeu e deixou‑me continuar. Ficamos assim ainda por um momento…”

    “Desculpa, mas não teria sido melhor, mais bonito e mais sincero, tirar francamente o lençol e…?”

    Ela respondeu obstinada: “Não, eu não queria de maneira nenhuma tirar o lençol. Não percebe? Tirar o lençol seria como trair a clínica e tudo o que, para mim, a clínica significa.”

    Já percebi. E o que aconteceu? Ele ejaculou?”

    “Não, de maneira nenhuma. Continuamos, digamos um par de minutos mais e, depois, ele começa de repente a repetir: “vou morrer, vou morrer, vou morrer, e eu, surpresa retiro a mão às pressas e começo a chamar por socorro.

    Chegam a irmã, o médico do plantão, outras irmãs, outros médicos; tiram‑lhe a roupa de cama. Ele tinha a perna esquerda inchada, enorme, com o dobro do tamanho da direita e violácea, um ataque de flebite.

    Estavam todos assustados, até porque ele dizia que tinha o pé frio e insensível. Mas sabe o que mais? Naturalmente, era eu quem estava mais assustada e dizia que era minha a culpa, mas não sem alguma vaidade, porque pensava que o sangue que antes deixara de circular, afluíra com força quando eu apoiara a palma da mão no sexo dele.”

    “E depois, o que aconteceu?”

    “Bom, a flebite está sob controle. Esta manhã entrei no quarto e ele olhou‑me e sorriu‑me, e com esse sorriso libertou‑me do remorso.”

    Outra vez ainda, Marta contou‑me uma história de certa maneira cômica, embora de uma comicidade um tanto macabra, como é característico das histórias de hospital. Disse‑me: “Está me acontecendo uma coisa extremamente aborrecida.”

    “O que é?”

    “Há um doente que quer a todo o custo que eu me case com ele e me ameaça: ou casa comigo ou faço um escândalo.”

    “Quem é ele?”

    “Um homem horrível, um bruto, proprietário de um restaurante, numa terra qualquer do sul. Tinha uma perna com um abcesso no joelho, parecia moribundo, cortaram‑lhe a perna e ele refloresceu de novo em dois dias, exatamente como certas árvores depois de serem podadas. Agora tem a cara vermelha, a transbordar saúde. Cometi o erro, aproveitando um momento em que arrumava a cama dele, ao fundo da qual agora havia já só um pé a despontar. Estendi a minha mão num lugar onde, por baixo do lençol dele, se ergue um volume realmente enorme.

    Foi mais forte do que eu, não resisti à tentação, nunca tinha visto uma coisa assim. E depois, imagina o que descobri: dois testículos grandes e duros como os dos touros de cobrição e uma espécie de tubo mole ou serpente sonolenta. Ele parecia estar dormindo; mas despertou imediatamente e murmurou: “Pode pegar, meu pau é todo seu”, ou outra vulgaridade do estilo, que deveria ter me afastado no mesmo instante. 

    Pelo contrário, como te contei, aquilo continuou a ser mais forte do que eu, deixei-me cair na tentação, e ia roçando de leve, de leve, a mão por cima do lençol, apenas para me certificar de que aquilo continuava ali, para sentir o maravilhoso volume dos testículos e a grossura extraordinária do pênis.

    Curiosamente, ele já não dizia nada, estava, evidentemente, a meditar na sua proposta de casamento. E, com efeito, um dia declarou que queria casar comigo.

    Disse-me que é rico, que me tratará como uma rainha, que não deixará que me falte coisa alguma. Imagina, eu, casada! E com um tipo daqueles!”

    “Bom, um dia terá que casar.”

    Olhou‑me e respondeu, depois, com a mais profunda convição: “eu nunca vou me casar”.

    “Mas é uma moça nova e precisa de amor.” “Oh, isso eu faço muito bem sozinha. Não preciso me casar. Aperto as coxas e esfrego‑as uma na outra e aí está feito e bem feito, o amor”

    Senti vontade de lhe fazer uma pergunta, apesar de esta me parecer indiscreta. Mas arrisquei: “mas vocé é… virgem?”

    “Sim, e sempre serei. Basta à idéia do amor, como o entende o dono do restaurante, para me gelar de horror. E ele, imagina você, pelo contrário, é justamente a minha virgindade que o atrai.”

    “E como é que você vai sair dessa?”

    Um sorriso malicioso enrugou‑lhe o rosto macilento e chupado de menina maltratada: “disse que fosse ele à frente para a terra dele, que eu iria logo para lá, me encontrar com ele asism que fosse possível. Jurei que íamos nos casar. Mas logo que ele saia da clínica, vai ver”

    “E, entretanto, você continua a acariciá-lo?”

    “Sim, já disse, é mais forte do que eu. Mas não vejo a menor relação entre ele e os órgãos genitais dele. Ele é, como posso dizer, o depositário de algo que não lhe pertence, um pouco como um soldado a quem se confia uma arma para lutar. Mas a arma não é dele”

    “E de quem é, então?”

    “Não sei, às vezes penso que pertença a um deus desconhecido, mas completamente diferente daquele que as irmãs trazem pendurado ao pescoço.”

    “Um deus desconhecido?” Surpreendido, não pude deixar de lhe contar a passagem dos Atos dos Apóstolos onde se fala da visita de S. Paulo a Atenas e do templo misterioso, consagrado ao deus desconhecido. Ela ouviu‑me sem mostrar grande interesse e disse secamente, depois: “Em todo o caso, esse deus desconhecido, sinto‑o apenas na clínica. Nos transportes cheios, os homens que se encostam a mim só me fazem nojo.”

    Eu disse, “Se você se apaixonasse tudo isso mudava.”

    “Por quê?”

    “Porque tirava de uma vez o lençol e veria à sua frente o deus desconhecido.”

    Ela olhou‑me e depois me respondeu de modo enigmático: “deus esconde‑se. Quem é que alguma vez O viu? Não sou uma alucinada.”

    Misteriosamente, após este último encontro, não a vi durante muito tempo. Dissera que me telefonaria, mas não o fez. No entanto, eis que, de repente, certa manhã, ressuscitou, marcando‑me um encontro para o café de sempre. Encontrei-a à minha espera, sentada na obscuridade do interior; pareceu‑me estar ao mesmo tempo com uma expressão transtornada e muito calma, uma estranha mescla de humores. Disse‑me abruptamente: “Matei um homem.”

    “O que é que está dizendo?”

    “Isto mesmo: matei o homem que amava.”

    “Você amava um homem?”

    “Disseste‑me que devia apaixonar‑me para poder olhar de frente o deus que se escondia por debaixo dos lençóis. Pois bem, aconteceu: apaixonei‑me por um rapaz de vinte anos, doente do coração. Também com ele, as coisas começaram com os mesmos toques, tal como era meu costume com todos os outros, mas depois, aconteceu uma coisa estranha, de repente, talvez por ele ser intelectual como você, por quem eu me sentia a todo o momento compreendida e julgada, vi, pela primeira vez, aquelas carícias como algo de vicioso. E, então, decidi tirar de uma vez os lençóis.”

    Exclamei, interrompendo‑a com alguma ironia: “o que é isso? Uma metáfora? Esta falando simbolicamente”

    Ela olhou‑me, ofendida: “O lençol não era apenas o símbolo da clínica; era também um obstáculo material. Como se pode amar um homem afinal com o lençol no meio.

    Assim, certa noite, com a tela da televisão a vibrar mais luminosa do que nunca no escuro da sala, enquanto ele me perseguia com a sua voz sútil e maliciosa, dizendo‑me que nunca teria coragem, assaltou‑me não sei que furor. Foi para mim, juro, como dar um grande salto no vazio e no escuro; como arrancar, de repente, o véu da face desse deus de que você me falou.

    De um só gesto, arranquei os cobertores e lancei‑me sobre o seu corpo nu. Tudo se passou em poucos minutos, à luz do incerto clarão da tela, no silêncio profundo da noite, no hospital. Senti, enquanto mergulhava o rosto no ventre dele, que estava dando um adeus definitivo à clínica e a tudo o que a clínica representara para mim no passado.

    Depois, uma enorme bola de sêmen encheu‑me a boca, separei‑me as pressas dele e corri para o banheiro para cuspir fora aquela coisa. Mas não tive coragem de voltar ao quarto, fui para a minha saleta e dormi até de madrugada. Fui acordada pela irmã, que me sacudia e me perguntava o que acontecera e porque me deixara adormecer, se era a minha vez de estar de plantão.

    Respondi‑lhe que me sentira mal. Talvez a irmã não tenha acreditado, talvez tenha tido o pressentimento de que alguma coisa acontecera. Disse‑me bruscamente que o rapaz doente do coração fora encontrado morto. E acrescentou: “tinha as roupas da cama puxadas para baixo até os joelhos; parecia que tinha querido descer da cama.”

    Fiquei calado por um momento; sentia um vago horror e não sabia o que dizer. Por fim, objetei: “bem, não pode ter morrido por culpa sua”

    Ela sacudiu a cabeça: “Não, fui eu, tenho a certeza. Mal deixei de ser a enfermeira que sabe parar para não fazer mal ao doente e me transformei na mulher que deixa de pôr limites ao seu amor e o matei.”

    Calou‑se por algum tempo e, a seguir, deu‑me uma informação: “Despedi‑me do hospital; agora trabalho num instituto de beleza, ao menos aí só há mulheres.”

    Depois, concluiu filosoficamente. “Eu era uma enfermeira honesta, mas viciosa. Agora me transformei numa mulher saudável e normal ‑ e numa assassina.”

    Alberto Moravia | A Coisa

    Minha querida Nora,

    Sabe quem encontrei há pouco tempo? A Diana, você se lembra dela? Diana, a que viveu conosco no colégio das freiras francesas. Diana, a filha única daquele homenzarrão rústico, proprietário de terras em Maremma. Diana que nunca chegou a conhecer a mãe, morta ao dar à luz. Diana de quem dizíamos que, tão fria, branca, educada, saudável, com os cabelos louros e os olhos azuis e o corpo com formas de estátua, que se tornaria uma dessas mulheres insensíveis e frígidas, que talvez ponham no mundo uma ninhada de filhos, mas que não chegam jamais a conhecer o amor.

    A recordação de Diana encontra‑se curiosamente ligada ao início da nossa relação; e esta, por sua vez, a uma famosa poesia de Baudelaire que “descobrimos” juntas nos nossos tempos de colégio e acerca da qual, hoje como então, nos encontramos em desacordo quanto ao sentido a atribuir‑lhe. A poesia é “Mulheres Condenadas”. Lembra? Em vez de nos apaixonarmos pelos versos humanitários de Victor Hugo que as irmãzinhas nos aconselhavam, líamos às escondidas Les Fleurs du Mal, com essa curiosidade ardente própria da primeira adolescência (tínhamos ambas treze anos), sempre em busca de alguma coisa que não se sabe ainda o que seja e que, todavia, se pressente como predestinada ao conhecimento.

    Éramos amigas, muito amigas, talvez já algo mais do que amigas, embora por certo ainda não amantes, e assim, quase fatalmente (há uma fatalidade também para as leituras), entre tantas poesias de Baudelaire, fomos cair na que tem por título “Mulheres Condenadas”. Lembra? Fui eu, para dizer a verdade, quem descobriu essa poesia fui eu a lê-la em voz alta e explicar a você o seu sentido, apoiando‑me prontamente nos pontos, por assim dizer, essenciais.

    Estes eram, sobretudo, dois. O primeiro, na estrofe: “Os meus beijos são leves como as borboletas / que afloram à tarde sobre os grandes lagos transparentes, / os do teu amante cavar‑te‑iam rugas / como trilhos de carro ou cascos de cavalo”; o segundo, na estrofe: “Maldito seja para sempre o sonhador inútil / que primeiro quis, na sua estupidez / vangloriando‑se de uma questão insolúvel e estéril, / misturar as coisas do amor e da moral”. Aqui, como se pode ver na primeira estrofe, surge privilegiado o amor homossexual, tão delicado e afetuoso em contraste com o amor heterossexual brutal e grosseiro; e na segunda, deixa‑se o terreno limpo dos escrúpulos morais, que nada têm a ver com as coisas do amor.

    Claro que eu própria, que te explicava o sentido da poesia, captava muito imperfeitamente o alcance das duas estrofes; mas compreendia, apesar de tudo, o bastante para escolhê-las entre todas as outras, como as mais suscetíveis de favorecerem a minha paixão por ti. Para dizer a verdade, esta paixão, hoje tão exclusiva e tão consciente de si própria, teve um começo confuso.

    Foi, de fato, para Diana que, num primeiro momento, orientei as minhas atenções.

    Como talvez você recorde quando havia exames da parte da manhã, as alunas externas passavam, também elas, a noite anterior no colégio. Diana, que habitualmente passava a noite em casa, ficou, numa dessas ocasiões, dormindo no colégio e o acaso quis que a sua cama ficasse ao lado da minha.

    Não hesitei mais, se bem que fosse a primeira vez; exigiam‑no os meus sentidos e obedeci. Assim, depois de uma longa espera ansiosa, levantei‑me da cama e, num pulo, alcancei a cama da Diana, levantei‑lhe os cobertores e insinuei‑me por debaixo dos lençóis, aproximando-me mediatamente dela, num abraço lento e irresistível, tal como uma serpente que, sem pressa, envolve nos seus anéis os ramos de uma bela árvore.

    Diana certamente despertou, mas, um pouco pelo seu caráter entorpecido e passivo e um pouco, talvez, por curiosidade, fingiu continuar adormecida e deixou‑me avançar. Digo‑te sinceramente, mal me dei conta de que Diana parecia permitir, experimentei o mesmo impulso voraz de uma faminta frente à presa: tinha vontade de a devorar com beijos e carícias. Mas, logo a seguir, impus‑me uma espécie de ordem e comecei a percorrer arrastadamente o seu corpo, deitado de costas e inerte, de cima a baixo:.

    Da boca que toquei com os meus lábios (o meu desejo, para quê negá‑lo?, era pela outra “boca”) ao seio que destapei e beijei compenetrada; dos seios ao ventre, onde a minha língua, lesma apaixonada, deixou um lento traço úmido; do ventre para baixo, até ao sexo, alvo supremo e último daquela minha deambulação, o sexo que pus à minha mercê, agarrando os joelhos de Diana com as duas mãos e abrindo‑lhe as pernas. Ela continuou fingindo que estava dormindo e eu lancei‑me com maior avidez sobre o meu alimento de amor, sem abrandar senão quando as coxas dela se apertaram convulsivamente no meu rosto, como a mordedura de uma ratoeira de fresca e musculosa carne jovem.

    O meu ardor, porém, deparou com os limites da minha inexperiência. Hoje, depois de ter suscitado o orgasmo de uma amante, voltaria a fazer o caminho inverso; do sexo ao ventre, do ventre aos seios, dos seios à boca e abandonar‑me‑ia, após tanto furor, à doçura de um abraço meigo.

    Mas eu era ainda inexperiente, não sabia ainda amar e, depois temia ser surpreendida por alguma freira que estivesse de vigia ou de alguma aluna insone. Assim, saí de junto de Diana pelos pés da cama e, sempre às escuras, voltei para a minha. Estava arquejante, tinha a boca cheia de suaves humores de sexo, sentia‑me feliz. Mas, no dia seguinte, esperava‑me uma surpresa que, no fundo, teria podido prever.

    Após o obstinado sono fingido da primeira amante da minha vida: quando me viu Diana comportou‑se como se nada, entre nós, tivesse acontecido; fria e serena como de costume, manteve durante todo o dia uma atitude não hostil nem perturbada, apenas completa e perfeitamente indiferente.

    Chegou a noite e ficamos de novo as duas em camas ao lado uma da outra; a uma hora já tardia, deixo a minha cama para entrar na da Diana. Mas a moça robusta e atlética, está acordada. Quando tento insinuar‑me entre os seus lençóis, um chute violento me repele e me faz cair por terra. Nesse momento, tive como que uma espécie de iluminação. A tua cama ficava também junto da de Diana, mas do outro lado.

    Pensei comigo, de repente, que você não poderia ter deixado de ouvir, na noite anterior, o tumulto do meu ruidoso amor e que, assim, estaria agora “à minha espera”. Foi com a segurança de quem se dirige para um encontro prometido que me arrastei até à tua cabeceira. Como previra, você não me repeliu. Foi assim que começou o nosso amor.

    Voltemos então a Baudelaire. Nos tornamos amantes, mas com certas precauções, a que chamarei rituais, por tua vontade, porque continuavas um pouco hesitante e amedrontada.

    Você pediu e então eu, para te agradar, aceitei que fizéssemos amor somente em duas ocasiões precisamente definidas: no colégio, de noite, todas as raras vezes que lá dormíamos, ou em minha casa, quando a sua mãe, uma viúva bonita e mundana, saía de Roma no fim de semana, na companhia do amante, e te permitia então que você viesse dormir na minha companhia.

    Salvo estas duas ocasiões, as nossas relações deveriam ser castas. Assim, embora aceitando‑o, não compreendia tão singular situação; depois, com o passar do tempo, compreendi.

    Estavas obcecada por aquela moral de que fala Baudelaire e, para adormecer o seu sentimento de culpa, queria que entre nós duas acontecesse tudo como em um sonho sonhado entre dois sonos, em minha casa ou no colégio. Mas, do mesmo modo, nunca você se habituou completamente à nossa relação, nunca a aceitou no fundo como um modo de vida estável e definitivo.

    E aqui quero citar uma vez mais Baudelaire, que, numa outra estrofe, fornece uma perfeita descrição da sua atitude em relação à mim. Eis a estrofe: “As indolentes lágrimas dos olhos fatigados / o ar alquebrado, o transe, a volúpia baça / os braços vencidos abandonados como armas vãs / tudo contribuía para o fascínio da sua beleza frágil. / Estendida a seus pés, calma e cheia de alegria, / Delfina chocava‑a com olhos ardentes, / como um animal forte que vigia a presa / depois de a ter marcado com os seus dentes”.

    A teu ver, eu seria Delfina, a tirana, a calma e cheia de alegria”, e tu Hipólita, a pobre criatura devastada pelo meu desejo, a presa “marcada” pelos meus dentes. Esta idéia bizarra inspirava à você um medo invencível que, uma vez mais, Baudelaire descreveu na perfeição: “Sinto abaterem‑se sobre mim pesados terrores / e destacamentos obscuros de fantasmas confusos / querendo arrastar‑me por caminhos de erros / rodeados por toda a parte de horizontes sangrentos”. Tudo isto, realmente, é dito de uma maneira romântica, segundo o gosto da época, mas espelha muito bem a aspiração à chamada “normalidade” que te obcecava, dois anos depois do começo do nosso amor.

    Curiosamente, essa aspiração assumiu em você um sentimento violento de insatisfação perante a virgindade. Eu era virgem, como ainda hoje sou, graças a Deus, e não sentia a menor insatisfação por causa dessa condição natural, que não me impedia de modo nenhum de ser uma pessoa e uma mulher completa. Você, pelo contrário, lembras? Parecia a todo momento convencida de que havia qualquer coisa a lhe empedir de viver livre e completamente. E, essa qualquer coisa identificava com a virgindade, da qual dizia que, se a nossa relação continuasse, nunca chegarias a libertar-se. Recordo a este propósito uma frase sua, para mim ofensiva: “Vou envelhecer a teu lado e transformar‑me nessa triste figura que é a solteirona virgem que se arranja com outras mulheres.

    Um dia, Diana, de quem continuávamos amigas após o fim dos estudos no colégio, convidou‑nos para passar o fim de semana com ela, na sua casa de Maremma. Fomos de trem até Grossetto. Na estação, estavam à nossa espera, com o automóvel, Diana e o pai.

    O pai da Diana, alto, corpulento, barbudo, estava vestido de pastor, com um capote de casentino vermelho, calças de veludo e botas altas de pele crua. Diana, menos rusticamente, envergava uma camisola branca e calças de montar verdes, enfiadas num par de botas altas e negras.

    Viajamos cerca de uma hora por uma paisagem de colinas despidas, banhadas por um sol brilhante, mas que não aquecia. Era inverno, um dia de tramontana. Chegamos por uma estrada enlameada ao topo de um pequeno monte, a uma espécie de celeiro ou curral extremamente tosco.

    De maneira nenhuma,era a vila senhorial que tínhamos esperado. A volta do edifício, não havia jardim, mas um terreiro cheio de lama e sujo, o chão de um cercado de cavalos. Os cavalos, que, com os cascos, tinham posto o terreno naquele estado, estavam nessa altura a pastar nos prados que ficavam um pouco abaixo da casa. Contei‑os e pareceram‑me seis. Mas assim que Diana e o pai apareceram, começaram a subir ao encontro deles, como se fossem mais cães do que propriamente cavalos. Diana e o pai fizeram algumas festas aos animais, depois convidaram‑nos a entrar e a esperá‑los dentro de casa. Tinham que ir a cavalo encontrar‑se com certos foreiros seus.

    Saíram, montaram e afastaram‑se. Nós nos sentamos na sala, diante de um fogo ateado no interior de uma grande lareira. Lembra? Disse-me, após um longo silêncio.

    “Viu a Diana? Fresca, branca e rosada, limpa, a imagem viva da saúde física e moral”. Senti‑me imediatamente ofendida pela reprovação implícita nas tuas palavras: “O que é que quer dizer? Que eu te impeço de ser como Diana, física e moralmente sã”. “Não, não é isso. Só estou dizendo que gostaria de ser como ela e que, de certo modo, a invejo.”

    Entretanto, Diana e o pai voltaram. Comemos bifes grelhados à florentina, cozinhados diretamente no fogo da lareira. Depois do café, o pai voltou a sair e nós fomos as três descansar no quarto do segundo piso.

    Mas não descansamos, começamos a tagarelar as três, deitadas numa imensa cama de casal. Não quero me reter nos temas preliminares. Recordo apenas que, em certo momento, você começou a falar do problema que então te obcecava: o da virgindade.

    Depois disso, aconteceu algo extraordinário. Com sua voz límpida e tranqüila, a Diana informou‑nos de que já arranjara maneira de resolver esse problema, pelo que, com efeito, havia já alguns meses que deixara de ser virgem.

    Você perguntou a ela com uma inveja mal disfarçada como fizera isso, e quem foi que lhe pretara tal serviço. Ela respondeu, com toda a candura: “Quem? Um cavalo.” Surpres, você exclamou “Mas, desculpa, um cavalo não é grande demais?”

    Diana começou a rir, depois explicou que o cavalo era apenas a causa indireta do desvirginamento. Na realidade, acontecera que, com a sua fúria de cavalgadas, num daqueles dias, sentira como um beliscão sutil e doloroso nas virilhas. Em seguida, regressada a casa, descobrira manchas de sangue na calça. Em resumo, o desvirginamento sucedera sem que ela quase se desse conta, por causa de passar tanto tempo montada, com as pernas abertas.

    Após esta excursão a Maremma, as coisas entre nós duas mudaram muito rapidamente. Separava‑nos uma espécie de crescente impasse. Você começou a sair com um homem, um advogado, um bonito homem com cerca de quarenta anos; e eu deixei de ver você, a não ser de relance, até porque o colégio acabara e a sua mãe, tendo se separado do amante, passava agora os fins de semana em casa, com você. Decorrido um ano, anunciou-me o seu casamento com o advogado. Três anos mais tarde, apenas com vinte anos, separou-se do seu marido por “incompatibilidade de gênios”

    Pelo menos, foi assim que a sua mãe me pôs a questão por telefone. Você voltou para perto dela. Eu por minha vez, voltei à sua vida e recomeçamos a fazer amor, embora sempre às escondidas e com imensas precauções. Finalmente, ao fim de dois anos de amor clandestino, arrancamos, como é costume dizer‑se, a máscara e começamos a viver juntas, felizes e livremente, na casa que ainda hoje habitamos.

    Agora, você deve estar interessada em saber por que misturei à nossa história Baudelaire e Diana.

    Digo já, porque, no fundo, você continua a identificar-se com Hipólita e persiste em me ver como Delfina ‑ a primeira, vítima e a segunda, tirana implacável. Ou seja, continua a nos ver não sem certa complacência masoquista da sua parte, como duas “mulheres condenadas”.

    Mas a realidade não é essa. Não somos, nem de longe, duas mulheres condenadas, somos duas mulheres corajosas que se salvaram da condenação. Perguntará, que condenação? E eu te respondo, a da escravidão perante o membro viril. Isto é, nos salvamos de uma ilusão de normalidade que, após a sua desgraçada experiência matrimonial, sabe agora muito bem não passar de um fruto da sua imaginação.

    Voltemos, porém, à Diana. O meu encontro com ela, depois de dois anos sem a ver, forneceu‑me ocasião de deparar exatamente com esse gênero de mulheres a que se aplica o epípeto baudelairiano de “condenadas”. Com efeito, deve saber que Diana já não está sozinha há muito tempo. Uniu‑se, numa ligação aparentemente semelhante à nossa, a uma tal Margherita, que eu nunca vira, mas que você, ao que parece, conhece, porque uma vez, já não sei quando, me falou dela e a definiu como “horrenda”.

    Dirá, pois sim, é uma mulher horrenda, mas você mesma disse que se encontra unida à Diana por uma ligação semelhante à nossa. Onde está, nesse caso, a condenação?

    Eu vou responder mas devagar, o que eu disse foi “aparentemente” semelhante à nossa. Na realidade, descobri que Diana e a amiga continuam mais do que adoradoras do membro viril, além disso, de uma maneira, por assim dizer, potenciada. Mas não quero antecipar a minha história. Basta que saiba que a sua servidão se alargou muito para lá do humano, até uma zona obscura que nada tem a ver com a humanidade, mas se caracteriza apenas pela cegueira e brutalidade próprias da agressão masculina.

    As coisas são como vou contar. Depois da sua partida para os Estados Unidos, chegou‑me um dia uma carta com o carimbo de uma terra próxima de Roma. Olhei para a carta e reconheci, no final, a assinatura de Diana. Li depois o seu conteúdo. Era breve, nos seguintes termos.

    “Querida, muito querida Ludovica, você sempre foi boa para mim e é tão séria e inteligente que, encontrando‑me agora numa situação difícil, pensei logo em ti. Sim, és a única que poderá me compreender. A única que poderá me salvar. Peço, suplico, ajuda‑me, sem você, sinto que não conseguirei, que ficarei condenada para sempre. Vivo no campo, a pouca distância de Roma. Arranja um pretexto qualquer, por exemplo, o fato de termos sido colegas no colégio, e vem fazer‑me uma visita. Mas vem . Até já, portanto, como espero. A que não te esqueceu nunca ao longo destes anos, sua, Diana.”

    Devo dizer que a carta me produziu uma estranha impressão. Continuava a ter presente na memória a poesia de Baudelaire que tanto nos fizera discutir acerca da condenação; e eis que também Diana, na sua carta, usava, por sua vez, a palavra “condenada”, reforçando‑a ainda por cima com um “para sempre” de desespero. A palavra era forte, muito mais forte do que na poesia de Baudelaire, afinal de contas escrita noutra época. E, era não só forte, mas até desproporcionada tratando‑se de uma relação de amor, ainda que infeliz. Sem dúvida, podia ser também que Diana escrevesse condenada” por não conseguir desfazer a sua ligação com a “horrenda” Margherita. Mas naquela palavra havia algo mais do que a impaciência pela libertação de uma submissão sentimental insuportável, qualquer coisa de obscuro e de indecifrável.

    Por isso, telefonei imediatamente à Diana, para o campo, para o número que ela me indicara na carta. Fingi, como me fora aconselhado que fizesse, que pretendia “matar saudades” de antigos tempos de colégio. Desse modo, consegui ser prontamente convidada para almoçar no dia seguinte.

    De manhã, saí de automóvel e dirigi‑me para a vila de Diana. Cheguei pouco antes da hora de almoço. O meu automóvel entrou por um portão escancarado, percorreu uma aléia de loureiros, desembocando em um largo jardim à italiana, bem tratado, com canteiros verdes e passagens ensaibradas entre eles, onde se erguia uma casa de bela aparência, com dois pisos.

    Dirigi‑me à porta. Não tive tempo de tocar, porque Diana abriu e apareceu no mesmo instante, como se estivesse à espera da minha chegada no átrio da entrada. Usava apenas a parte de baixo de um biquini, com os seis nus, por causa do calor do verão, mas com a seguinte particularidade, em vez de sandálias, calçava botas altas, vermelhas, da mesma cor do biquini. Quando lhe dirigi um segundo olhar, digo sinceramente, tive como que um sobressalto de pasmo ao ver como a Diana mudara e de que maneira.

    No instante em que a olhei, procedi a uma espécie de inventário instantâneo de tudo o que houvera outrora na sua pessoa e agora lhe faltava. Desaparecera a sua formosura rija e vivaz.

    Em lugar dos seios altivos, duas maminhas que mal se destacavam do corpo; em lugar do ventre redondo e cheio, uma depressão achatada e esticada entre os dois ossos salientes da bacia; em vez das belas pernas bem torneadas, dois paus esgalgados. Mas a transformação maior era a do rosto; branco e macilento, encovavam‑se nele os olhos azuis que a magreza tornara enormes e que dois vincos de fadiga sexual faziam ainda mais carregados. E a boca, outrora de um rosa natural e nunca retocado, surgia agora desgraçadamente aumentada por um borrão de batom vermelho‑gerânio.

    De toda a sua pessoa emanava, assim, um estranho ar de liquefação, como de uma vela consumida pela chama. Dir‑se‑ia que emagrecera menos do que se dissolvera. Ouvi‑a exclamar em tom alegre: “Até que enfim, Ludovica! Espero você desde o nascer do sol!”. E então, nem a sua voz reconheci. Lembrava‑me dela clara e argêntea, agora soava baixa e rouca. Tossiu e reparei que, entre dois longos dedos esqueléticos, segurava um cigarro aceso.

    Nos abraçamos, e depois, ela me disse com um ar casual que me pareceu contrastar com o tom desesperado e urgente da sua carta.

    “Margherita foi dar uma volta pelo campo, volta daqui a pouco. Entretanto, vem cá, vou mostrar a casa a você. Vamos começar pelas cavalariças. Os cavalos são realmente estupendos. Você gosta de cavalos, não gosta?”

    E dizendo isto, sem esperar resposta, precedeu‑me, atravessando o jardim, de uma aléia para a outra, na direção de um edifício baixo e comprido que eu, de início, não notara.

    A fieira de janelas em boca de lobo fez‑me adivinhar que era ali a cavalariça. Diana caminhava lentamente, de cabeça baixa, levando de vez em quando à boca o cigarro aceso, como se estivesse a refletir sobre algum problema particular. Por fim, todavia, o resultado da meditação foi escasso. Ela anunciou: “Há aqui seis cavalos e um pônei. Os cavalos são puros‑sangues, não têm nada a ver com os do meu pai. O pônei, esse, é simplesmente uma maravilha”.

    Chegamos à porta da cocheira e entramos. Vi um comprido e estreito recinto rectangular com cinco baias de um lado e cinco do outro. Os cavalos gabados por Diana ocupavam seis dos compartimentos e, embora tais animais não sejam a minha especialidade, reparei imediatamente que eram exemplares magníficos, dois brancos, um malhado e três castanhos.

    Lustrosos e esbeltos, nas suas baias enceradas e revestidas de um vidrado claro no chão, sugeriam uma impressão de luxo. Diana deteve‑se diante de cada um dos cavalos, chamando‑os pelo nome um a um, fazendo‑me observar os seus dotes e acariciando‑os; mas tudo isso, de uma maneira algo abstrata.

    Depois, aproximou‑se do pônei, que, pela sua pequena envergadura, eu não notara ainda, e disse, num tom desprendido e ligeiro: “Mas este é o meu preferido. Venha vê‑lo.”

    E com estas palavras, entrou na baia. Segui‑a com curiosidade. O pônei, castanho claro como um veado, com a cauda e a crina louras, estava imóvel, como se meditasse, sob o dilúvio dos pelos longos e claros do pescoço.

    Diana começou a gabar‑me a sua beleza e, enquanto falava, acariciava o animal no flanco. Tive a estranha sensação de que a Diana falava no vazio, apenas por falar, e que eu, em vez de a ouvir, devia antes olhá‑la, uma vez que aquilo que ela estava fazendo era mais importante do que aquilo que me dizia.

    Muito naturalmente, os meus olhos fixaram‑se na sua longa mão, magra e branca, com dedos hábeis e unhas escarlates afiadas, que passava e voltava a passar pelo flanco fremente do animal. E assim, não me escapou que, a cada festa, a mão descia um pouco mais, em direção ao ventre do pônei.

    Entretanto, com uma estranha pressa quase histérica, ela continuava a falar, mas longe de ouvi-la eu já nem dava pela sua voz. Em vez disso, isolada como que por uma estranha surdez, olhava a mão, lenta e incerta e todavia animada de não se sabia que intenção, mas que se aproximava agora de muito perto do sexo do pônei, fechado na sua bolsa de pêlo castanho.

    Houve mais duas ou três festas da Diana, depois a mão teve um impulso quase mecânico e sobrepôs‑se declaradamente no membro do animal, fechando‑o, após um momento de hesitação, entre os seus dedos.

    Então, como se me tivesse libertado de uma só vez daquela espécie de surdez passageira, ouvi bruscamente Diana dizer‑me: “É o meu preferido, não te escondo, mas tenho que acrescentar mais alguma coisa que não sei como dizer. Digamos que é o meu preferido porque, com ele, acontece a “coisa”. Por causa dessa “coisa”, estou eu aqui, por causa dessa “coisa” te escrevi a carta.

    Diana estava agora completamente apertada contra o pônei e não se conseguia ver o que fazia; depois, vi claramente que o braço dela, estendido por baixo da barriga do animal, ia e vinha, para a frente e para trás, e compreendi, logicamente, embora não sem incredulidade, que Diana estava masturbando o animal.

    Entretanto, falava, falava, como se acompanhasse com a voz o ritmo das carícias. Aquilo a que eu chamo a “coisa”, não é tanto ele, mas o que Margherita e eu com ele fazemos. Por isso, dele posso dizer como certas mulheres: o meu rapaz, o meu homem. Até porque, a Margherita não pára de me repetir, entre ele e um homem não há a mínima diferença, a mínima… Sim, tem a cabeça, o corpo e as pernas diferentes das de um homem; mas ali é exatamente igual a um homem, exceto talvez no tamanho, o que, segundo a Margherita, não é um defeito, mas, pelo contrário, em certas ocasiões, uma vantagem.

    Não tenha vergonha, olha e me diz se não é uma autêntica beleza, diz se não é verdade que é lindo?”

    De repente, o pônei empinou‑se, agitou as patas dianteiras no ar e imobilizou‑se soltando um longo relincho sonoro. Diana apressou‑se em amansá‑lo, acalmando‑o com a voz e novas carícias. Por mim, saí de dentro da baia. Devia ter no rosto uma expressão eloqüente porque a Diana interrompeu o fluxo do seu discurso contínuo e murmurou em voz baixa, como se falasse com o pônei: “Vamos lá, não te excites, não sejas porco”.

    Depois, num tom diferente, inesperadamente suplicante, chamou por mim: “Ludovica!”. Eu ia me afastando, mas, colhida pela entoação da sua voz, me detive.

    “Ludovica, escrevi porque caí numa ratoeira, numa autêntica ratoeira, numa ratoeira infame, e só você pode me salvar”.

    Comovida, balbuciei: “Farei o que puder”. “Não, Ludovica, não é o que pudere, mas uma só coisa precisa: me levar daqui embora, depressa e hoje mesmo”. “Se você quiser, pode vir comigo”.

    Mas você vai ter que insistir, Ludovica, porque eu sou vil, muito covarde e, no último momento, sou capaz de querer recuar.”

    Um pouco aborrecida, respondi então: “Pois bem, eu insisto”. Ela continuou, como se falasse consigo mesma: “Vamos almoçar, depois despeço‑me da Margherita e você me levas embora”. Eu não disse mais nada e precedi‑a com alguma pressa, na saída da cocheira.

    No jardim, Diana alcançou‑me, agarrou‑me com força o braço, e recomeçou a falar. Mas eu não a ouvia. Lembrava‑me daquela sua incrível e, no entanto, lógica afirmação de que “o pônei era o homem dela”, e não podia impedir‑me de pensar para comigo que a submissão de tantas mulheres ao membro viril encontrava em Diana uma confirmação caricatural, transformando a chamada “normalidade”, a que em certa altura também você aspirava, em algo de ridículo e monstruoso.

    Sim, Diana e a amiga tinham‑se juntado já não para se amarem, como nós, mas para adorarem no pônei o eterno falo, símbolo de degradação e de escravidão. Depois, recordei as nossas polémicas sobre a poesia de Baudelaire e disse para comigo que Diana e Margherita, elas sim, eram as “mulheres condenadas” de que falava o poeta, e não nós, como você, em momentos de mau humor e dúvida, se obstina, às vezes, em pensar.

    Voltou‑me à mente o final da poesia: “descei, descei, lamentáveis vítimas, e tive a certeza de que dizia respeito, não a nós duas, em nada vítimas, mas à miserável Diana e à sua “horrenda” Margherita. Na realidade, eram vítimas de si próprias, porque não podiam deixar de prosternar‑se perante o macho e porque, sobretudo, fingiam amar‑se para melhor esconderem a sua perversão, profanando com essa indigna comédia o amor afetuoso e puro que as poderia ter feito felizes.

    Entretanto, Diana dizia: “Irei ficar provisoriamente com você. Assim, Margherita pensará que nos amamos e me deixará em paz.” Eu respondi quase com furor: “Ficar comigo, não; nem pensar nisso. E, por favor, tira essa mão do meu braço”.

    Ela queixou‑se: “Porque é que são todos tão cruéis comigo? Até você, agora…”

    “Não consigo esquecer que ainda há pouco, com essa mão, estava mexendo naquela “coisa”. Mas, como é capaz de fazer aquilo?”

    “Foi Margherita. Foi‑me persuadindo gradualmente. Depois, um dia, pôs‑me um ultimato”.

    “Que ultimato?”

    “Ou você faz “a coisa” ou nos separamos”.

    “E então? Tinha sido uma bela ocasião para você ir embora.”

    “Parecia impossível deixá‑la. Queria bem à ela; pensei que seria só uma vez, uma coisa assim: um capricho.”

    “Mas onde está ela, a Margherita?”

    “Olha ela, ali.”

    Levantei os olhos e vi então a Margherita. Pensei logo no seu adjetivo tão decidido: “horrenda”. Depois, fitei‑a demoradamente, como que para descobrir nela a confirmação do teu juízo. Sim, a Margherita era realmente “horrenda”. Estava por baixo do pórtico da vila; de pé, com as pernas afastadas e as mãos nas ancas. Alta, corpulenta, com uma camisa quadriculada, um cinto com uma fivela enorme, calças de pólo brancas, botas altas negras.

    E, não sei porquê, talvez por causa da sua atitude arrogante, lembrava‑me o pai da Diana, tal como o víramos daquela vez no campo, no seu velho casarão. Olhei‑a no rosto. Por baixo da massa redonda dos cabelos escuros e crespos, a testa, insolitamente baixa, traçava como que um elmo por cima dos olhos, encovados e penetrantes. O minúsculo nariz adunco, a boca proeminente, mas de lábios delgados, faziam pensar no focinho de alguns grandes símios. Em suma, era uma giganta, uma atleta de luta livre feminina, como essas que vemos, na televisão, puxarem‑se os cabelos, pontapearem‑se na boca, saltarem sobre o estômago da adversária.

    Ela deixou‑nos avançar e depois exclamou, com uma cordialidade que me pareceu fingida e premeditada: “Tu és a Ludovica, não és? Bem-vinda a nossa casa, acho que vamos ser amigas. Pensei mal te você, bem-vinda, bem-vinda”. A voz era semelhante à pessoa, aparentemente jovial, mas, por baixo, fria e imperiosa. A voz de uma diretora de colégio, de uma madre abadessa ou de uma enfermeira‑chefe.

    Naturalmente, nos cumprimentamos com um beijo; e então, para minha surpresa, dei‑me conta de que a Margherita procurava transformar o beijo de hospitalidade num beijo de amor. Os seus lábios salientes deslizaram, úmidos e tenazes, das minhas faces na direção da minha boca. Desviei‑me o melhor que pude, mas ela apertava‑me com força entre os braços poderosos e não consegui evitar que a ponta da sua língua penetrasse por um segundo no canto da minha boca. Descarada, satisfeita, recuou então e perguntou: “Pode se saber onde estiveram? Na cavalariça, é claro! Diana mostrou‑lhe a paixão dela, aquele pônei louro? Lindo, não é? Mas entrem, está tudo pronto, tudo pronto”.

    Entramos na casa. Era uma sala de estar convencionalmente rústica, com barrotes negros à vista no teto, paredes caiadas, chaminé de pedra em lage, móveis maciços e escuros, mas não antigos. Uma dessas mesas compridas e estreitas ditas de “refeitório, mostrava‑se de um dos lados, com os talheres postos para três pessoas. Em resumo, você pode imaginar bem o quadro.

    Não vou alargar‑me com as nossas conversas durante o almoço; na realidade, foi só a Margherita quem falou, dirigindo‑se especialmente a mim, excluindo Diana da conversa. De que falava ela? Como costuma dizer‑se, de tudo e de nada ou seja, de coisas insignificantes; mas não deixava por um momento de fazer‑me compreender os sentimentos, verdadeiramente espantosos pela sua imprevisibilidade e natureza súbita, que havia alguns minutos parecia alimentar por mim.

    Fixava‑me com aqueles seus olhos encovados, brilhantes e inflamados por não sei que bestial concupiscência; por baixo da mesa, as barrigas das suas pernas, enormes, apertavam as minhas como se mordessem; chegou ao ponto de estender a mão engordurada e, com a desculpa de ver o amuleto que trago ao pescoço, me acariciar os seios, exclamando: “Como é bonita a nossa Ludovica, não é, Diana?” Esta última não respondeu; torceu os lábios grandes como num esgar de dolorosa perplexidade; tirou os olhos de mim e voltou‑os para a lareira. ” Margherita, então, disse‑Lhe brutalmente: “Diz qualquer coisa; falei com você, porque não responde?” “Não tenho nada a dizer”. “Puta, você tem que dizer que é linda”.

    Diana olhou‑me e repetiu mecanicamente: “Sim, é linda”. Entretanto, durante esta cena embaraçosa, eu procurava libertar a minha perna das de Margherita, mas inutilmente. Era como ter o pé preso numa ratoeira; essa mesma ratoeira “infame” de que a Diana me falara na cocheira.

    Tínhamos almoçado um excelente melão com presunto, bifes na grelha, sobremesa. Depois deste último, a Margherita fez o que costumam fazer os oradores no fim dos banquetes: bateu três vezes com o garfo na mesa. Olhavamos para ela, surpreendidas. Ela então disse: “Tenho que te anunciar uma coisa importante. Digo isso agora porque está aqui a Ludovica e ela poderá testemunhar que falei a sério. Portanto, a partir de hoje, esta casa está à venda”.

    Em vez de olhar para a Margherita, virei os olhos para Diana, à qual se dirigia claramente esta comunicação. Tinha a boca mais franzida do que nunca; depois perguntou: “O que é que disse ‑ vai vender a casa?”

    “Encarreguei disso uma agência. Amanhã aparece um grande anúncio num dos jornais de Roma. Vou vender toda a propriedade, incluindo os terrenos que rodeiam a casa. Mas não vendo os cavalos, esses não.”

    A Diana perguntou então, um tanto mecanicamente: “Vai levá‑los para outra casa?”

    Magherita calou‑se por um instante, para sublinhar a importância do que iria responder a seguir; depois, explicou: A minha próxima casa vai ser um andar em Milão: por muito grande que seja, não vejo como poderei lá meter sete cavalos. Por outro lado, gosto demasiado deles e não consigo imaginá‑los nas mãos de outros. A alternativa seria pô‑los em liberdade, devolvê‑los ao estado selvagem, mas não me parece possível. Por isso, vou matá‑los. Afinal de contas, são propriedade minha; posso fazer deles o que quiser”.

    “Como é que vai matar os cavalos?”

    “O mais humanamente possível: a tiro de pistola.”

    Houve um silêncio prolongadíssimo. Aproveito esse silêncio, minha muito querida, para te dizer o que pensei, no mesmo instante, daquelas declarações da Margherita. Pensei que eram falsas e sem fundamento, no sentido de constituírem uma espécie de jogo entre ela e Diana. Margherita não tinha a mínima intenção de vender a casa e ainda menos de matar os cavalos; do seu canto, Diana também não acreditava que a amiga estivesse falando sério. Mas Margherita, por qualquer motivo, sentia necessidade de ameaçar Diana; e Diana, pelo mesmo motivo, tinha necessidade de mostrar que acreditava nas ameaças.

    Assim, não fiquei excessivamente espantada quando Margherita prosseguiu: “Ontem de manhã, Diana me fez saber que tencionava voltar para junto do pai. Foi por isso que decidi vender a casa e matar os cavalos. Mas se Diana mudar de idéia, é muito provável que nada disso aconteça.”

    Era um convite explícito a que a Diana se decidisse. Olhei para ela, devo confessar, com alguma ansiedade: embora fosse claro para mim, como já disse, que tudo aquilo era um jogo, não podia deixar de esperar que Diana conseguisse força suficiente para se libertar de Margherita.

    Infelizmente, tal esperança em breve se dissipou. Vi Diana baixar os olhos; depois articulou: “Mas eu não quero que os cavalos morram.”

    “Não quer, hein?” ‑ Margherita parecia estar agora a divertir‑se: “não quer, mas, na realidade, se decidir ir embora, é o que quer mesmo.”

    Não sei porquê, talvez por estupidez, quis intervir neste jogo entre elas: “Desculpa Margherita, mas não é certo: tudo depende não de Diana, mas de você. Pelo menos no que diz respeito aos cavalos.”

    Curiosamente, Margherita não pareceu ofender‑se. Tomou as minhas palavras como a aceitação pelo meu lado de um outro jogo, o jogo que ela tentava travar comigo. Por isso, disse ambigüamente: “Digamos, nesse caso, querida Ludovica, que tudo depende de você.”

    “De mim?”

    “Se estiver disposta, mesmo que provisoriamente, a tomar o lugar de Diana, não vendo a casa e não mato os cavalos. Mas ter que me dizer já. Se aceitar, poderá ir hoje mesmo à Roma buscar as suas roupas, e Diana aproveita para se ir embora daqui.”

    Devo ter feito uma cara de espanto, porque Margherita se corrigiu quase no mesmo instante: “Me entendam: estou brincando. Mas o meu convite continua valendo. Acho você simpática e gostaria que ficasse aqui com Diana ou sem Diana. Portanto, Diana, você ainda não me respondeu e… “

    Neste ponto, devo dizer que, enquanto Diana não parecia ter dado crédito à ameaça de matar os cavalos, a ameaça de ser substituída por mim parecia exercer sobre ela um efeito indubitável. Olhava‑me com os seus grandes olhos azuis, dilatados não se sabia por que brusca suspeita. Depois, disse com decisão: “Para os cavalos não morrerem, estou disposta a fazer todas as coisas”.

    “Não são todas as coisas. É a “coisa”!

    Pois bem, minha querida, nesta altura, eu deveria intervir com energia para arrancar Diana das garras da “horrenda” Margherita. Mas, apesar de minha promessa, não o fiz. E isto por dois motivos: antes de tudo, porque, após o convite, em nada jocoso, de Margherita, temia, intervindo, não poder salvar Diana senão ao preço excessivo de aceitar substituí‑la; em segundo lugar, porque, naquele momento, odiava mais a Diana do que a própria Margherita. Sim, a Margherita era um monstro irremediável e definitivo; mas Diana era pior precisamente por ser melhor: uma pessoa incerta, fresca, fechada, covarde.

    Você dirá que neste meu juízo talvez influa a minha infeliz experiência de colegial. Talvez. Mas o ódio é um sentimento complicado, tecido de elementos heterogêneos; nunca odiamos por um motivo só.

    Assim, não me intrometi. Vi Diana fitar Margherita com uma expressão tímida e subjugada; depois, respondeu num sopro: “Está bem.”

    “O que é que está bem?

    Farei o que você quiser”

    “Hoje mesmo?”

    “Sim.”

    ” Já?”

    Diana protestou com uma má vontade cúmplice: “Você deixa pelo menos eu digerir o almoço.”

    “De acordo, vamos as três descansar um pouco.

    Você, Diana, vai para o quarto; já lá falar com você. Entretanto, primeiro tenho que levar Ludovica ao quarto dela.”

    “Eu posso levá-la. Afinal de contas, fui eu quem a convidou.”

    “A dona da casa sou eu, sou eu que vou com ela.”

    “Mas eu queria falar com Ludovica.”

    “Falem mais tarde.”

    Esta discussão acabou da maneira previsível: Diana, abatida e perplexa, saíu da sala por uma porta que daria provavelmente para a parte inferior da casa;

    Margherita e eu saímos, pelo contrárío, em direção ao piso superior. Ela precedeu‑me ao longo de um corredor, abriu uma porta, entrámos as duas em um quarto de mansarda, com teto inclinado e uma única janela. Sentia‑me já pouco à vontade por causa da insistência de Margherita em querer me mostrar o quarto. O constrangimento aumentou quando a vi dar uma volta à chave na porta. Objetei no mesmo instante: “O que é isso? Que é que está fazendo?”

    Margherita não se embaraçou: “É porque aquela puta é bem capaz de aparecer aqui de repente e sem bater.”

    Eu não disse nada. Margherita aproximou‑se, e com um gesto ligeiro e desenvolto, passou‑me um braço à volta da cintura. Ali estávamos as duas, quase embaraçadas, de pé, por baixo do teco inclinado do sótão. Margherita continuou: “Ela é ciumenta, mas, “desta vez, tem motivo para isso. Falou‑me tanto de você. Contou‑me tudo: o colégio e que você ia até a cama dela à noite, enquanto ela fingia dormir… Fiz uma certa idéia de você, naturalmente favorável. Mas você é cem vezes melhor do que eu supunha. E, sobretudo, cem vezes melhor do que aquela puta da Diana.”

    Tentando interromper aquela pesada declaração de amor, objetei: Mas porque lhe chama de puta? Há um tempo atrás lá na mesa chamou-a assim.”

    Porque é o que ela é. Faz birras, mostra‑se desdenhosa e depois acaba sempre por dizer que sim. E não se deixe enganar por aqueles sentimentalismos: não pensa senão numa coisa, sabel qual, e tudo o mais, nada conta para ela. Por exemplo, os cavalos. Julga que realmente, se eu amanhã os matasse, ela experimentaria o grande desgosto que diz? Nada disso. Mas como você estava presente, quis mostrar que tem uma alma sensível. Puta, é o que ela é. Mas estou farta dela! Então, que decide?

    Senti‑me sinceramente surpreendida: “Mas o que você quer dizer?” “Aceita vir morar comigo, digamos por uns dois meses, isto para começar?”

    Objetei, tentando ganhar tempo: “Mas há Diana”. ” Quanto a Diana, faremos as coisas de maneira a nos livrarmos dela. Você toma o lugar dela”.

    Ficou calada um instante, depois acrescentou: “Há um bocado falei em matar os cavalos. Para fazê-la ir embora, basta matar o pônei.”

    Eu exclamei: “Agora há pouco, você ameaçou matar o pônei para impedir Diana de ir embora. Agora ameaça matar o pônei para fazê-la ir embora.”

    “É que agora há pouco eu não queria que Diana partisse e sabia que a ameaça bastava para fazê-la ficar. Mas para fazê-la ir embora, é necessária não a ameaça, mas a sua execução. Se eu matar o pônei, ela vai embora.”

    Estava encostada em mim, inclinou‑se, beijou‑me o pescoço e depois os ombros. Tentei libertar‑me do abraço dela, mas sem êxito; por fim, disse contra a minha própria vontade: “o que você quer de mim afinal?”

    “Aquilo que Diana não pode me dar, nem nunca me dará: um verdadeiro amor.”

    Garanto que, naquele momento, Margherita quase me fez medo. Uma coisa é ouvir certas coisas ditas por você, e outra são as mesmas coisas ditas por uma giganta com olhos de porco e focinho de macaco. Objetei debilmente: “eu já gosto de outra pessoa.”

    “O que é tem? Sei tudo a seu respeito. Ela se chama Nora, não é? Traga-a para cá também; venham as duas viver comigo.”

    Entretanto, empurrava‑me para a cama e, com uma das mãos, levantava‑me desajeitadamente a saia.

    Ora, você sabes que muitas vezes, e especialmente no verão, não visto nada por baixo da saia. E então que ela sobe a mão entre as minhas pernas, me agarra os pelos do púbis com os dedos e puxa com força, exatamente como faria um homem libidinoso e brutal. Soltei um grito de dor e libertei‑me com um empurrão.

    No mesmo instante, bateram à porta. Com os olhos cintilantes de excitação, Margherita me fez violentamente sinal com a mão, ordenando‑me que não a abrisse. Como resposta, chegueaté a porta e abri.

    Diana estava na entrada e olhou‑nos em silêncio a ambas, antes de dizer fosse o que fosse. Depois falou: “Marguerita, estou pronta.”

    Margherita por um momento, não achou o que responder; ofegava, ainda mostrava‑se alterada. Finalmente, articulou com esforço: “então você não foi dormir?”

    Diana sacudiu a cabeça: “estive aqui o tempo todo.”

    Eu perguntei com surpresa: “aqui, onde?”

    Ela respondeu em voz baixa, sem olhar para mim: “Aqui no corredor, sentada no chão, à espera que vocês acabassem.”

    Senti, confesso, quase ódio por ela, tão vil e tão volúvel: à minha chegada, suplicara‑me que a levasse dali; agora acocorava‑se atrás da porta, como um cão, à espera que “acabássemos”. Margherita disse impulsivamente: “Está bem, vamos” E depois, virando‑se para mim: “Então estamos combinadas! Até já.”

    Saíram e eu atirei‑me para cima da cama, para repousar por fim um pouco, após tantas emoções. Mas ao cabo de alguns minutos, levantei‑me de um salto e fui à janela: tinha a certeza de que havia qualquer coisa ali destinada a ser vista por mim, mas não sabia exactamente o quê.

    Esperei um bocado. Da janela, via‑se o prado que se estendia atrás da vila. Ao fundo do prado, destacava‑se uma grande piscina de água azul, circundada por uma alta sebe de buxo aparado. O recinto traçado pela sebe de buxo abria‑se a meio e revelava, em perspectiva, para lá da piscina, uma construção alongada e baixa, sem dúvida as cabines dos vestiários e o bar para os aperitivos .

    Olhava a piscina e dizia comigo mesma que não passava duma espécie de cenário de teatro: em breve, aconteceria alguma coisa mais. E, com efeito, pouco tempo depois, desembocava ali uma pequena procissão, vinda do lado da cocheira e atravessando o prado.

    A frente, vinha Diana, com a sela e as botas de cano alto vermelhas; trazia o pônei pelo cabresto. Este seguia docilmente, devagar, com o focinho tapado pela pelagem comprida das crinas caídas para diante e com a aparência de quem está em meditação. Trazia uma coroa de flores vermelhas à volta do pescoço; as flores pareceram‑me ser rosas, da variedade mais simples, com uma única fieira de pétalas na corola. Atrás do ponei, segurando‑lhe a longa cauda loura com ambas as mãos, com a solenidade de quem segura o manto de um soberano, vinha Margherita.

    Vi as três figuras seguirem até à pastagem aberta entre as duas sebes altas de buxo. Desapareceram e, depois, voltaram a aparecer por trás da sebe, do lado direito, mas sendo agora apenas visíveis as cabeças das duas mulheres. O pônei, demasiado baixo, não era, com efeito, visível.

    Então, uma seqüencia alternada de ações e contemplações começou a desenrolar‑se. Primeiro, Diana fez menção de se inclinar na direção onde devia estar o pônei; a sua cabeça desapareceu, a cabeça de Margherita, pelo contrário, continuou visível: podia-se dizer que olhava para qualquer coisa que estava para acontecer atrás da sebe, por baixo dos seus olhos.

    Passou talvez um minuto; então, inopinadamente, o pônei, como já fizera na cavalariça, empinou‑se mostrando bruscamente acima da sebe as patas dianteiras e a cabeça. Voltou a desaparecer logo a seguir; decorreram mais alguns intermináveis minutos, e a cabeça de Diana reapareceu acima da sebe; foi então a vez de desaparecer a cabeça de Margherita.

    Era a Diana agora quem contemplava qualquer coisa que se passava atrás da sebe, por debaixo dos seus olhos; o pônei não voltou a empinar‑se. A seguir, Margherita emergiu por seu turno; agora as cabeças das duas mulheres eram simultaneamente visíveis, uma frente à outra.

    Talvez Margherita tenha falado, dando certa ordem à outra. Vi claramente Diana sacudir a cabeça, num sinal de recusa. Margherita estendeu um braço e segurou com a mão a cabeça de Diana, como às vezes alguém faz no mar com outra pessoa para a obrigar, brincando, que mergulhe. Mas Diana não cedeu. Houve um momento de imobilidade, depois Margherita, só com uma das mãos, esbofeteou duas vezes Diana, uma bofetada em cada face. Vi então a cabeça de Diana começar a descer lentamente e desaparecer de novo. Nessa altura, saí da janela.

    Sem me apressar, uma vez que sabia que ambas se encontravam agora consagradas à “coisa”, saí do quarto, desci ao térreo, cheguei ao jardim. Voltei, cheia de alegria, ao ver o meu automóvel estacionado diante da porta de casa. Entrei, peguei o volante e, no minuto seguinte, já corria pela estrada a fora em direção à Roma.

    Você vai me perguntar porque é que, afinal de contas, te contei toda esta história bastante sinistra. E respondo: por arrependimento. Confesso que, no momento em que Margherita se encostou em mim no quarto, tive quase a tentação de ceder. Teria feito isso precisamente por ela me repugnar, precisamente por achá-la, como você diz, “horrenda”, precisamente por ela me implorar que tomasse o lugar de Diana. Mas, por minha sorte, a sua lembrança não me abandonou. Quando Diana bateu à porta, tudo já havia acabado, eu vencera a tentação e só pensava em você e em tudo o que de bom e de belo você representa na minha vida.

    Escreve‑me depressa.

    Sua Ludovica.

    Manuel Teixeira-Gomes | Margareta


    Novelas Eróticas
    Manuel Teixeira-Gomes

    MARGARETA

     Em matéria de viagens fui sempre, por instinto e reflexão, refratário a programas; contudo, na minha primeira ida à Itália, reconhecendo a necessidade de visitar com certo método país tão incomparável e infinitamente variado na paisagem e na arte, delineei um plano que me tolhesse as turbulências juvenis, sopeando-me a irrebatível mania das digressões, e executei-o sem repugnância nem arrependimento.

    Desta vez tendo forçosamente – a obrigação sentimental! – de passar por Sevilha, deliberei tomar ali algum vapor costeiro que me levasse a Barcelona, onde procuraria transporte direto a Génova, seguindo logo para Florença, na resolução de permanecer em território toscano durante a primavera.

    Na minha grande inexperiência afigurava-se-me que, evitando a França, nada interromperia nesse trajeto o carácter essencial e comum à alma neo-latina, e trasladar-me de Espanha a Itália seria apenas continuar em país habitado por gente de igual compleição intelectual, embora diversa na denominação geográfica.

    Grande alcance estético prestava eu a essa peregrinação de Florença, parecendo-me conveniente evitar tudo quanto me desviasse o espírito das linhas progressivas e convergentes à pátria austera de Miguel Ângelo.

    Iluminações formosas (totalmente confirmadas depois) eram as que então me sugeria a miragem da fascinadora cidade!

    Visitados os pontos de mais devoção do meu culto sevilhano meti-me no vapor Gigon, e descido o Guadalquivir de margens planturosas repeti com redobrado gosto o já meu muito conhecido roteiro da costa espanhola, de Cádis a Barcelona.

    Esses vapores só navegam, habitualmente, durante a noite, de forma que os dias inteiros podia-os o passageiro levar em terra, nas numerosas cidades da escala obrigada, cidades de que eu tinha – e ainda hoje tenho – as floridas etiquetas pitorescas, românticas e imarcescíveis: Cádis de especiosos encantos; Algeciras, com o seu nome de arribada em velha crónica, e o panorama da imensa baía que Gibraltar espreita e domina; Málaga das mulheres pérfidas e das ciganas doiradas; Almeria tórrida, escondendo no seu aparente manto de enxofre e esparto a veiga fertilíssima; Cartagena fortificada em cerros naturais, que lhe fecham o porto num círculo perfeito; Alicante árabe, propícia aos palmeirais; Valência das tranças acobreadas, rescendendo a flor de laranjeira e a anis; Tarragona dura e ventosa, ilustrada pela colossal rosácea da sua catedral, os seus presídios e os sólidos vestígios de muito remotas idades...

    Barcelona, nesse tempo, sofria apenas dos pródromos da sua crise demolidora e reconstrutiva; existia ainda intacto o bairro da catedral, com a sua rede de tortuosas ruas estreitas, formando nós em palácios góticos de florente fachada; a «praça real», italiana como a de qualquer burgo perdido nos Apeninos; a graça, a afabilidade hospitaleira da sua população robusta, mourejante, industriosa; e os campos acidentados, ricos em deslumbrantes panoramas, marchetados de jardins e ruínas preciosas.

    No caráter geral da cidade havia mais homogeneidade, de modo que a catedral – a incomparável – com as suas naves tenebrosas, onde se acendem as fulgurações dos vitrais; o claustro composto, deduzido, como sinfonia magistralmente orquestrada na série das suas capelas de retábulos polilhados, entrevistos através de vetustíssimas e imaginosas grades de ferro batido; a sua catedral – a única – não dava ainda essa impressão de flagrante anacronismo que depois foi tomando passo a passo, com a abertura das infinitas avenidas retilíneas, dos esquares geométricos, das vastas praças retangulares.

    Era ainda um ponto de romaria piedosa, para o artista e para o crente, essa catedral e o seu bairro. Ali me entretive dias inteiros, sem me impacientar com o atraso do Orion, grande vapor da companhia Rubatino, vindo de Buenos Aires, no qual resolvera embarcar para Génova, contentando-me com passar diariamente pela agência, que era próxima do meu hotel, a informar-me da sua chegada. No dia em que ele apareceu, comprado o bilhete, fui fazer as minhas despedidas ao templo, onde levara horas de tão puro enlevo. Mas não ia muito senhor de mim: algo enternecido e como que envergonhado de sentir que me faltava a fé...

    Já passava do meio-dia e tudo se encontrava deserto. Dei a volta ritual do claustro, coei-me ao interior do templo, e deliciei-me pela derradeira vez nas perspetivas daquelas grutas de finíssimas estalactites, onde as formas hieráticas traduziam aspirações celestiais, e os rastos de ouro acentuavam nas trevas as curvas elegantes – suplicantes – das altíssimas ogivas.

    Depois, no ponto mais apagado, mais sepultado em escuridão, procurei um banco e sentei-me. Todas aquelas linhas esfuziantes e místicas se impunham ao meu espírito, no silêncio completo em que tudo caíra, e eu deixava a meditação (se é que a não encaminhava) ir manso a manso rebuscando o segredo dos prazeres visionários de uma religião de fausto e renunciamento, compreendendo a sua essência, e invejando quase aqueles que sinceramente os fruíram...

    Nisto soaram passos pelo claustro, com risadas alegres, retinidas, e, abrindo-se a portada que me estava fronteira, um imenso retângulo de luz viva rompeu a quietação tenebrosa da nave e por ele desceu uma série de anjos buliçosos, raparigas de elevada estatura, vestidas de claro, trazendo nas mãos fartos molhos de flores profanas...

    Não eram turistas inglesas, como a princípio supus, quase contrariado, mas criaturas da raça espanhola que, transpostas as portas do templo, mergulharam sem repulsão na sua atmosfera mística, e sem turbulência nem indiferença lhe foram percorrendo as capelas, ajoelhando aqui e além, conforme encontravam alguma santa imagem de mais particular devoção.

    Eram cinco, todas espigadas, flexíveis, airosas, lindas. Depressa lhes reconheci a origem argentina, porque já vira, a miúdo, desde a minha chegada a Espanha, outros tipos afins, inconfundíveis, e sabia que, mercê de condições excecionais de prosperidade, a grande república sul-americana mandava naquele ano à Europa, a pretexto da exposição universal de Paris (isto foi em 1889!) grande número dos seus habitantes mais privilegiados pela fortuna e pela inteligência. Em toda a Espanha causavam sensação!

    Tive ensejo de examinar detidamente as minhas cinco encantadoras importunas, mas sobretudo aquela que quase se me ajoelhou aos pés, tão próximo estava o meu banco de um pequeno altar dedicado a Santa Margarida, o qual se armava na base da mesma coluna a que eu me encostava e parecia objeto de especial devoção por parte da formosa menina.

    Que mimosa carnação, que imensos olhos de veludo, que opulência de cabelo negro, ondeado, macio! E que ritmo nos movimentos, que graciosíssimas proporções desde o busto cheio, invertendo, após a cintura longa e flexível a sua curva harmoniosa na curva dos quadris!

    Apesar da fervorosa prece em que parecia embebida, não lhe escapou a minha muda e ingénua admiração, e duas ou três vezes os nossos olhares se encontraram. Ao levantar-se julguei até que me encarava com simpatia e esboçava um gesto de despedida...

    Pouco se demoraram e completada a volta em redor da igreja desapareceram.

    Soaram duas horas no relógio da torre, lembrando-me que o Orion pouco tardaria em partir, e com um profundíssimo suspiro deixei aquela gruta de enlevo e fui ao hotel buscar as malas.

    Antes das 3 já me encontrava a bordo do Orion, imenso transatlântico deselegante, cujo perfil em forma de abóbora me explicou o motivo da sua demora; era, com efeito, de pouquíssimo andamento, mas em compensação aguentava lindamente o mar, como nesta mesma noite o provou na passagem do golfo de Leão onde, apesar da «tramontana», se dançou até tarde.

    No tombadilho reinava a confusão própria dos paquetes de luxo durante as poucas horas de uma escala interessante, e principalmente quando se aproxima o momento de largar. Os mercadores ambulantes de curiosidades locais davam as últimas investidas aos passageiros a fim de lhes impingir a sua fazenda, que iam enfardando para o regresso à terra; entre o vapor e o cais havia um incessante vaivém de botes com passageiros e provisões; a bordo, as famílias numerosas congregavam-se para verificar se lhes faltava algum dos seus membros, e aquelas a quem eles faltavam, encostadas à amurada, inspecionavam o cais e a Rambla procurando divisar os retardatários.

    Após o indispensável exame do beliche que me designaram, subi à tolda para não perder o espetáculo da partida, e isolado, próximo do governo do barco, sentei-me a fumar. Pouco tardou que não visse aparecer um cavalheiro corpulento, com ares de natural e consciente importância, suíças «sal e pimenta» e volumoso abdómen, trazendo pelo braço uma espigada menina de seus catorze anos, ainda de cabelo solto e anáguas, que se me acercaram buscando assento. As feições da rapariga fizeram-me estremecer, tanto lembravam as da visitante da catedral, devota de Santa Margarida.

    Eram pai e filha, e conversavam em espanhol com o acentuado sotaque americano, que bem corresponde, no elanguescido, ao português do Brasil.

    – Já era tempo de chegarem – dizia o pai em tom entre risonho e severo.

    – E se ficassem em terra, pai? – advertiu a menina. – Teriam de tomar o comboio...

    – E tu não te zangavas?

    – Não sei... – replicou sorrindo; e como que a pedir desculpa da ingénua observação da filha, para mim sorriu também, percebendo que eu os ouvia e entendia. A minha simpatia, já desperta, facilmente correspondeu com outro sorriso próprio para entabular relações. Conversámos enquanto a rapariga corria à amurada, a perscrutar os cais de binóculo, e voltava a dar conta das suas investigações. Soube então que vinha de Buenos Aires; que a sua família era numerosíssima; que três das suas filhas haviam ido a terra com duas amigas e que a sua demora já o inquietava.

    – Ia jurar – observei a fazer-me esperto – que uma das suas filhas que está em terra é muito parecida com esta menina e chama-se Margarida...

    – Ora essa! É verdade... mas como sabe isso?...

    Ia-lhe apontar a minha assombrosa memória de fisionomias, o encontro na catedral, e o provável nome de Margarida, pelo altar que escolhera para as suas devoções, quando a menina exclamou:

    – Olha pai, lá estão elas. Já embarcaram no bote. Anda, vamos à escada esperá-las.

    O pai levantou-se sem aguardar as minhas explicações, mas antes de se afastar fixou-me, como que a recordar as feições de alguém muito remotamente visto, e suspeitosamente perguntou:

    – O senhor já esteve em Buenos Aires?

    – Eu, não – respondi com a tranquilidade e a certeza desafetada de quem diz a verdade.

    Mas a filha puxou por ele, levando-o direito à escada dos passageiros, e a conversa interrompeu-se.

    Eu segui-os e fácil me foi verificar que me não enganara nas minhas conjeturas. No bote que trazia a família do argentino vinham as cinco senhoras que vira na catedral, e como eu me houvesse aproximado da escada, misturando-me com os mais passageiros, fácil foi também certificar-me de que a linda devota se chamava Margareta, por ser esse o nome pelo qual as companheiras a designavam. Sucedeu ainda que ao pisar o tombadilho ela se deteve um instante a falar com o pai, que estava de costas voltadas para mim, e os seus olhos circunvagando distraidamente pararam nos meus, não podendo reprimir uma cintilação de surpresa, e purpurizando-se-lhe o rosto.

    O pai notou a impressão, voltando-se incontinente a ver quem a provocara, e calculando que fosse eu teve um movimento de viva contrariedade. Eu, porém, exultava. Sem dúvida Margareta reconhecera-me e isso enchia-me o peito de confiança, de audácia. E ela era uma dessas figuras, por assim dizer secreta e zelosamente idealizadas e esperadas na mocidade, anos a fio, que, encontradas, a alma só trabalha e anseia por cativar.

    E que formosa, agora, ao ar livre, na luz crua de uma atmosfera empapada de azul, a que dificilmente se sujeitam as mulheres morenas, sem quebra dos seus encantos naturais.

    Morena; eu não sei bem se o mate da sua tez admitia a classificação de morena. Não era loira, mas se o rosto estava levemente queimado da aragem do mar, já no pescoço lhe transparecia a suavidade leitosa das pétalas de açucena. E toda ela tal como a vira na catedral, ou melhor ainda: alta, espigada, ondulosa, seio farto, cintura breve, olhos como dois céus...

    Outro passageiro, que adregou estar ao meu lado, rapaz de maneiras quebradiças, armado de óculos redondos, tipo sul-americano de cor esverdinhada, afectadamente desdenhoso (era secretário do consulado argentino em Barcelona e mirou-me com inspecionadora impertinência antes de responder às minhas perguntas) explicou-me que das cinco senhoras três eram filhas do banqueiro Rodolfi, italiano estabelecido desde rapaz na Argentina e casado com uma nativa indiana, cuja fortuna passava por ser imensa e quase assombroso o luxo do seu passadio; que tinha inúmeros filhos: dois já sócios que, na sua ausência, ficavam gerindo a casa em Buenos Aires, e dois empregados em Génova e Milão nas sucursais da firma, etc.

    Não sei porquê a revelação de tão abundante prole e de tão esplêndida opulência deu-me um choque desagradável, como se levantasse insuperável barreira entre mim e Margareta, a qual, positivamente, me fascinava.

    Diligenciei falar-lhe e tive a alegria de perceber que por seu turno ela procurava aproximar-se. Ainda o barco não acabara de levantar ferro e já nós havíamos entabulado conversa, ao abrigo de uma canoa de salvamento, no segundo tombadilho. A hesitação na troca das primeiras palavras, e o enleio da expressão, foram recíprocos; valeu-nos a catedral e as impressões colhidas em terra... Mas a conversa pouco durou, pois logo tocaram para jantar.

    Na sala de jantar a numerosa família Rodolfi ocupava uma vasta mesa oval, e do meu lugar avisto Margareta quase de frente. Namoro franco, descabelado, à portuguesa... A mãe de Margareta, que vejo pela primeira vez, tem, com efeito, todo o tipo indiano: cara larga, malares salientes, cabeleira abundante e crespa, já mais de grisalha, e acabada a refeição retira-se na companhia do marido que lhe dá o braço.

    Logo se armou o baile e eu danço com Margareta; danço ainda, sem folga nem descanso, embriagado com o calor do seu corpo, sentindo-lhe, à pressão do meu peito, os seios duros e livres escorregarem sob a blusa de seda vermelha e finíssima como folha de papoula. De repente a irmã mais nova aparece, chama por ela, segreda-lhe qualquer coisa e Margareta para de dançar a pretexto de fadiga. Eu também não danço mais.

    Às onze horas ainda nos encontramos a palrar em redor de uma mesa onde as irmãs e as duas outras companheiras argentinas escreviam. O secretário consular, despejado que foi o seu saco de pilhérias, senta-se ao piano e toca noturnos de Chopin, com certo sentimento e arte. Isso nos empapa de melancolia.

    – Porque não dançou mais comigo? – perguntei por fim em tom doído.

    Hesitação.

    – Sentia-me cansada... – e logo: – O senhor já esteve em Buenos Aires?

    – Eu?... Nunca estive na América.

    – Ah!...

    Conversamos com mais desafogo, quase com intimidade. Eu devaneio, positivamente:

    – Quanto desejaria possuir uma recordação palpável desta viagem... do nosso encontro...

    Ela ri da lembrança.

    – Recordação?...; nas asas do vento, nas ondas do mar, como já li não sei em que poeta...

    Diz-me então que talvez nos vejamos em Florença, onde ela e uma irmã vão passar dois meses, no convento de Ursulinas onde foram educadas. E enquanto refere pormenores sobre o colégio, no qual viverá com liberdade igual à que teria num hotel, toma uma folha de camélia e nela escreve lentamente algumas palavras, erguendo, de quando em quando, para mim o seu olhar profundo, que um sorriso malicioso ilumina.

    Depois mistura a folha de camélia no monte de folhas caídas, sobre a mesa, da jarra que a orna, e atira tudo para o chão. Ao tempo as outras meninas haviam terminado a correspondência. Levantam-se todas e dadas as boas-noites desaparecem.

    Eu precipito-me sobre as folhas esparsas, buscando febrilmente aquela que me deve assinalar a recordação dessa noite; entretanto o secretário consular executa, a propósito, um scherzo impertinente, escarninho...

    Achei a folha; nada diz mas basta para me transportar ao sétimo céu do embevecimento. Ainda hoje a conservo e, coisa curiosíssima, leêm-se-lhe as palavras tão distintamente como na hora em que foram escritas:

    Nel Orione, 18 de abril – Margareta.

    No meu camarote encontra-se deitado já, mas de luz acesa e entretido a ler, um rapaz que eu vira sentado à mesa dos Rodolfi e supunha ser irmão de Margareta. Encetamos conversa e ele explica-me que nenhum parentesco o liga ao banqueiro, ao qual vinha recomendado com o encargo de o meter num colégio da Suíça.

    Com a entrada em Barcelona dos novos passageiros, tinham-no mudado para aquele camarote, e já familiar (e loquaz) dá-me informações, que não peço, acerca dos seus companheiros; depois dispara-me a pergunta de sempre:

    – O senhor já esteve em Buenos Aires, não é verdade?

    Resposta negativa, enérgica, e em tom aborrecido, mas ele, sem prestar grande atenção ao que lhe digo, observa:

    – Margareta é muito linda, não acha? Ela fez-lhe muita impressão...

    Aqui o meu lirismo trasborda, e num arranco de entusiasmo ponho-me a exaltar os encantos da argentina em termos de pura adoração.

    – Em Buenos Aires não há menina mais formosa... – ia ele comentando, mas de repente estaca e pondo-se de joelhos sobre a cama, para espreitar pela rede que, junto ao teto, separa os camarotes, diz de mansinho: – Oiço vozes e risos... Ah! é Margareta e as irmãs que sem dúvida nos escutam...

    – Pois se escutavam ouviram a verdade – atalho eu, cheio de falsa coragem, para acudir à confusão em que a descoberta me mergulhara.

    Foi uma completa declaração de amor. Como seria recebida? Não tenho ânimo para me deitar (é que estou deveras enamorado) e subo ao tombadilho onde passo quase o resto da noite a fumar e a matutar sobre o caso. Como é que ela me acolheria no dia seguinte? O céu claro e estrelado; toda a costa de França se desenha a pontos luminosos, nos arabescos das estradas e nas rosaças dos povoados; como eu desejaria ir ali procurar nalguma vila ideal o ninho para os nossos eternos amores!...

    Dia seguinte. Margareta cora ao avistar-me e eu sinto igualmente afoguearem-se-me as faces. Bons-dias tímidos. Corresponde com ar amável e franco, os olhos postos nos meus.

    Depois esquiva-se, parecendo querer evitar-me. O pai, que vinha perto, não me fala, nem corresponde ao meu cumprimento, inclinado, humilde, de boné na mão... Isso perturba-me, entristece-me; mas não me irrita nem indigna.

    Daí a pouco subo ao segundo tombadilho onde a gente nova se diverte brincando. Margareta vem ao meu encontro e sem mais preâmbulos conta que o pai está persuadido de que eu sou alguém, que esteve em Buenos Aires, de quem amigos seus tiveram sérios motivos de queixa. Ela, porém, não acredita, fiada na minha negativa e zomba e ri do engano. Conversamos confiadamente, já de coração nas mãos, enquanto os outros saltam, jogam e cantam.

    No melhor da conversa surge uma das irmãzinhas (já não sei qual; eram tantas!) e fala-lhe ao ouvido, lançando-me um olhar furtivo e curioso. Compreendo que é emissária do pai, a verificar se estamos juntos. Separo-me sem mais resistência e vou saborear sozinho os sonhos que despontaram do que ela me disse. São imaginações pacatas, burguesas... e deliciosas. Era a mulher que eu sempre ideara para companheira da vida toda... com muitos filhos.

    Ao jantar verifico logo que mudaram os lugares, de modo que Margareta me volte as costas, mas ela (que está bastante pálida) teima e insiste em retomar o lugar da véspera. Por fim o pai cede, irritadíssimo, erguendo as mãos ao céu. Trocamos a furto rápidos mas profundíssimos olhares. À noite não consigo falar-lhe.

    De resto toda a gente recolhe cedo, preparando-se para o desembarque, pois o vapor deve chegar a Génova de madrugada. O meu companheiro conta-me que Margareta e o pai tiveram uma violenta discussão por minha causa, mas ignora os pormenores. Quando acordei, após várias horas de vigília, cortada de fantasias paradisíacas e pesadelos infernais, subo à tolda mas já os não encontro a bordo.

    Vou para o hotel Isotta onde, conforme Margareta me dissera, o banqueiro reservara aposentos. Chego à hora do primeiro almoço e para evitar mais contrariedades, em vez de ir para a grande sala, onde julgo que estariam, entro numa salinha próxima. É precisamente aí que toda a família está já reunida. Foi a aparição do espectro de Banquo. Margareta cerra os olhos e inclina a cabeça, com todo o jeito de quem desmaia; o pai faz-se cor de monco de peru e levanta-se arrebatadamente...

    Eu bato em retirada e vou tomar o meu café, tranquilamente, na galeria Mazzini, escolhendo sítio que permite vigiar entradas e saídas do hotel, e pouco tardou que não visse aparecer Margareta, com uma das irmãs e as duas outras companheiras argentinas. Sigo-as, e já perto da catedral, onde vão dar graças a Deus pela feliz viagem, juntámo-nos.

    O pai está furioso; nada o convence de que eu não seja quem ele imagina; mas ela tem absoluta confiança em mim; lamenta o equívoco esperando que o pai «talvez um dia me venha a estimar muitíssimo». Porém não vale a pena alimentar-lhe a cólera com a minha presença, insistência inútil pois que dentro de duas semanas, como já me dissera, nos poderemos encontrar livremente em Florença.

    O seu olhar mergulha no meu para me sondar; depois como que para repassado de melancolia. Eu prometo-lhe que hoje mesmo deixarei Génova e irei esperá-la a Florença. Ela estende-me as mãos e eu levo demoradamente à boca a que ainda não tem luva. Sinto que todo o corpo lhe estremece, e num impulso irreprimível oferece-me os lábios que beijo sofregamente. Foi um desses beijos que valem por mil promessas formais de casamento...

    Nessa mesma noite me pus a caminho de Florença, mas fazendo estações em várias cidades de modo a chegar quando Margareta já lá estivesse. Ansiava por tornar a vê-la, porém estava tão certo de que a encontraria que me era mais doloroso esperá-la em lugar fixo, e então às portas dum convento...

    O meu primeiro cuidado, naturalmente, foi ir ali procurá-la, apenas larguei o comboio, quando procurava alojamento e tive a tremenda surpresa de saber que as meninas Rodolfi já lá não estavam; dois dias depois de chegarem o pai viera buscá-las...

    Na posta-restante aguardava-me a confirmação da desventura, num bilhete de Margareta participando-me que o pai, por motivos de ordem financeira, fora obrigado a voltar imediatamente para Buenos Aires. E nas suas palavras transluzia o ressentimento pela minha pouca pressa em chegar a Florença.

    Dois meses depois recebi um jornal onde vi, sublinhado a tinta vermelha, que o banqueiro Rodolfi falira; outros exemplares do mesmo vieram sucessivamente dar comigo em Lisboa e no Algarve. Todos vinham sobrescritados com a letra de Margareta.

    Ainda lhe escrevi mas as cartas voltaram-me recambiadas por insuficiência de endereço.

    Esperaria ela que eu a fosse buscar à América? Isso era, precisamente, o que teria feito... se pudesse.

    Pobre Margareta! e pobre de mim, que, sem culpa alguma, ainda hoje a sua lembrança me atormenta como um remorso...

    Bougie, janeiro, 1934

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